Casaram-se depois de três anos de namoro. A festa foi
simples, na casa do casal, com alguns convidados íntimos. Graça, como não podia
ser diferente, queria uma festa cheia de pompa, decorações de fazer os olhos
delirarem, Buffet caro e muitas lembrançinhas. O Paiva, um
homem que controlava as finanças no casal com obtusa pertinácia, preferiu
poupar parte do dinheiro da festa para comprar um carro ou, quem sabe, fazer
algum acabamento na casa. Independente da
festa escolhida, era inegável a felicidade do casal, dois apaixonados
confessos. Há quem diga que se casaram muito cedo. – “Com três anos de namoro
você não conhece sequer o passado da noiva!” – comentava a maledicência alheia.
O fato desconhecido por muitos era que o casal já se conhecia há, pelo menos,
meia década. Passaram alguns anos no anonimato, longe dos comentários das
vizinhas gordas.
Dois anos após a simples festinha de casamento, os
dois ainda viviam em lua de mel e, talvez, ela estivesse mais viva do que
nunca. Paiva conservava alguns caprichos de namorado arcaico, o que fazia Graça
perder-se de alegria e, inegavelmente, os caprichos do marido massageavam o ego
da jovem esposa. No salão, em meio às fofocas inerentes ao local, Graça
dispara:
– Marido igual ao meu não há! E duvido!
– Bobagem. Isso é só no começo. – retrucava uma
senhora de aparência sofrida que fazia as unhas
– Fala isso por não conhecer o meu Paiva. Ele ainda
me enche de mimos, como se fossemos namorados.
– Então aproveite bem. Logo isso passa e você vai
acabar como nós: contente em cuidar da casa.
– Isola! – E deu três “soquinhos” na madeira.
E Paiva orgulhava-se dos caprichos que ainda
mantinha. Pensava que o cavalheirismo não poderia, em hipótese alguma,
desaparecer. Numa quinta-feira, depois do trabalho, decide chegar em casa mais
tarde: foi com os colegas do trabalho ao bar beber e conversar. Após uma ou uma
hora e meia de bar, o Mesquita pergunta:
– E então, Paiva, como anda o casamento? Já se
arrependeu? – Dá aquela gargalhada enquanto cutuca os outros presentes na mesa,
como num convite para também rirem.
– De maneira alguma. Tenho certeza de que tomei a
decisão correta.
– Alegria de início, rapaz! Eu também era assim, mas
logo isso passa.
– Sei não, Mesquita.
– Escuta, rapaz. Você ainda está maravilhado com a
magia do casamento e isso é bom, maravilhoso! Mas isso passa! Depois de acordar
de manhã vendo a mesma cara do outro lado da cama, você enjoa.
– Mas Graça é linda. Me diga: como enjoar de um rosto
lindo?
– A beleza só pode ser apreciada por um curto período.
Depois de algum tempo, a pessoa linda parece normal, como se a beleza dela
tivesse acabado.
– Até que faz sentido... – Paiva confessou com cera
tristeza.
– Diga a verdade: você já nem acha sua esposa tão
linda assim, não é mesmo?
– Acho que um marido não deve responder esse tipo de
pergunta.
– Pois pense sobre – O Mesquita aconselhou.
– Pensarei. Mas preciso ir. Alguém pode me dar uma
carona?
– Carona?? – Mesquita assustou-se – não veio de
carro?
– Não tenho carro – confessou.
– Ora essa, homem sem carro não é homem! Não acredito
em homem que não tenha carro!
– Estou economizando para comprar um – Paiva disse
meio acanhado.
– Pois não demore! Vamos, eu te levo.
Verdade seja dita. Paiva jamais ligara para o fato de
não ter um carro e não se preocupava em ter um tão cedo, pensava haverem coisas
mais importantes para ter antes de um carro. Mas as palavras do Mesquita
corromperam Paiva, e não há nada mais forte, mais insistente, mais difícil de
deixar de lado, do que uma ideia. “Homem sem carro não é homem!”. Estas
palavras martelaram a mente do Paiva por algumas semanas.
Numa noite qualquer, o casal jantava, mas Paiva
parecia estar presente apenas de corpo, seu olhar era longínquo, como se
pensasse em algo o tempo todo. Tomada de curiosidade e de preocupação, Graça
pergunta:
– Amor, o que
há com você?
Parecendo que voltava de um transe, Paiva responde –
Oi? A, sim. Estou pensando em comprar um carro.
– Um carro? Seria maravilhoso, mas você acha que
podemos?
– Se podemos eu não sei, mas sei que devo comprar um
carro!
– Posso ajudar a escolher? – Graça pergunta radiante.
– De jeito nenhum! Carro é coisa para homem. Homem,
entendeu?
– Quanto machismo, meu amor. Mulher também entende de
carros, ora essa!
– Claro que entende. As mulheres entendem de carro tanto
quanto um homem entende de bijuterias.
– Mas há homens que entendem de bijuterias.
– Eles não são bem homens, se é que me entende.
– Não importa. Eu quero ir junto com você, afinal,
somos casados!
– Vou com o Mesquita. Ele, sim, entende de carros.
– Você se casou com o Mesquita?
– Não amola. Eu não dou palpite na tinta de cabelo
que você vai comprar ou com quem vai comprar. E fim de papo. Já está decidido.
E, de fato, Paiva não levou a esposa para escolher o
carro. Combinou com o Mesquita de irem à concessionária escolher o veículo. Às
oito horas da manhã Mesquita buzina em frente ao portão da casa de Paiva. Este
sai com pressa e extasiado. Enfia-se no carro de Mesquita e diz:
– Vamos? Estou muito ansioso! – Dizia sem conseguir
esconder o sorriso de alegria
– É pra já, meu caro!
Enquanto não chegavam à concessionária, Paiva ia
dizendo:
– Acredita que minha mulher queria ir?
– Ixii, começou a se meter onde não devia.
– Foi o que eu disse para ela. Mulher chata!
– Não liga para esse tipo de coisa. Vocês terão
motivos mais interessantes para brigar. – e dá uma gargalhada, daquelas
cutucando o colega.
Na primeira
concessionária que entram, Paiva se encanta por um carro. Parecia que um
completava o outro. Paiva não tem dúvidas e compra a máquina. A verdade é que
Paiva não possuía todo o dinheiro para comprar o carro, mas, no dia anterior,
passou numa financeira e adquiriu cerca de R$ 100.000,00. Empréstimo feito,
leva sua máquina para casa. No caminho, vai sozinho, aproveitando cada segundo
dentro do seu novo carro. Se havia algo mais prazeroso do que dirigir aquela
máquina, Paiva se esquecera completamente. Sentado no banco e atrás do volante,
o Paiva era uma criança, era só alegria. Parado num semáforo, ele não pode
deixar de notar que algumas pessoas invejavam seu carro novo e pensou: “Agora,
sim, sou um homem de verdade!”.
Ao chegar em casa, Paiva estaciona o carro na
garagem, vai até o outro lado da rua para tomar distância e fica por algum
tempo admirando sua nova aquisição. Uma centelha ilumina-lhe as ideias: “Que
contraste! Minha casa é bem simples e meu carro tão luxuoso!”. Mas isso pouco
importava, pois o importante mesmo era o carro. Enquanto Paiva admirava a
máquina, Graça aparece, não menos radiante com a nova aquisição do marido e
corre na direção do amado:
– Amor, o carro é lindo! Maravilhoso!
– Eu te falei que era melhor eu ir sozinho! – esboça
um leve sorriso.
– Ainda não concordo, mas admito que você escolheu
bem!
– Caso você tivesse dado palpite, estaríamos olhando
para um Sedan! – e dá risada.
– Não faz drama, criatura! Mas, vamos! Quero dirigir!
– Você quer o que?!
– Dirigir o carro, ora essa!
– Mas nem pensar! O carro ainda está com cheiro de
novo e eu não quero que você arranhe ou estrague alguma coisa.
Graça tenta responder alguma coisa, mas não consegue.
Ela tinha que escolher: ou engolia o choro, ou falava. A coitada volta para
dentro de casa humilhada. E os dias que se seguiram foram mais frustrantes
ainda: Paiva só dava atenção ao carro, já não lembrava que tinha esposa, ou por
outra, lembrava de Graça quando os desejos do sexo tomavam conta dele. Paiva
lavava o carro com mais pertinácia do que quando tomava banho. O carro era
impecável, sem nenhum arranhão, nenhum amassado, nem poeira havia no carro. Nos
finais de semana Paiva saia com a esposa e esta ficava na dúvida: – “Ele está
passeando com o carro ou comigo? Qual de nós ele está exibindo e do que se
orgulha?” – Graça martirizava-se em pensamento, sempre numa humilhação
profunda. Ela só queria a atenção do marido outra vez, como namorados.
Num dos finais de semana de passeio, Paiva acordou
certo em deixar seu carro novo ainda mais bonito, se é que isso era possível.
Levanta, escova os dentes, toma o café da manhã sozinho e vai à área da casa
admirar o carro antes de começar a enchê-lo de mimos. Ao abrir a porta, Paiva
estaca, esbugalha os olhos e reza a Deus para ainda estar dormindo: o carro
havia desaparecido! O homem apoia-se na porta para não cair das pernas. Está
trêmulo como uma vara verde. Sem pensar duas vezes, sai correndo, ainda com o
short do pijama e sem camiseta, até a delegacia para registrar o B.O. e começar
a busca implacável pelo automóvel. Ainda na delegacia, recebe uma ligação, olha
no celular e era Mesquita. Paiva atende o celular num desespero sem par:
– Alô! Uma desgraça aconteceu, Mesquita! Roubara meu
carro! Debaixo do meu nariz e eu não vi nada! Roubaram meu carro!
– Estou sabendo. Acalme-se. Sem querer, encontrei o
seu carro.
– Encontrou?? Onde? Fala que eu vou voando!
–Acalma, homem! A notícia não é boa!
– Ai meu Deus! – Paiva senta-se num banquinho e pede
água com açúcar para o guardinha. – Fala de uma vez!
– O ladrão bateu o seu carro e não sobrou nada, nem
do ladrão nem do seu carro.
– Meu carro! Eu ainda nem terminar de pagar! Vou já!
– Paiva desliga o celular sem ver mais nada e toma o primeiro taxi que encontra.
Ao chegar ao local da tragédia, Paiva não quer
acreditar. Antes de descer do taxi, viu que seu carro estava uma sucata só, não
havia sobrado nada. O comprimento da máquina havia diminuído pela metade. Paiva
abre a porta do taxi lentamente, quase desmaiando. Desce e é recebido pelo
Mesquita, que fazia um sinal de lamentação com a cabeça. Conforme chegava mais
perto da sucata, via pedaços humanos espalhados: um possível braço de um lado,
algo que parecia uma mão de outro, couro cabeludo jogado noutro lado. Fosse
quem fosse, seria impossível reconhecer o marginal.
Atônito e com náuseas colossais, lembra-se de ligar para a esposa, para perguntar se ela havia visto ou ouvido alguma coisa durante a noite. Em posse do celular, antes de discar vê que havia um sms não lido e o abre para conferir. O sms era de Graça. A angústia, o desespero, a dor e o surto de Paiva não podem ser narrados em linhas. No sms estava escrito: "Eu queria sua atenção e sei que consegui. Eu e seu amado carro agora somos um só".
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