quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Nota do Marco


Prezados leitores, muito me perguntaram o porquê da pouca atualização do blog no mês de outubro. Eu vos explico: Eu estava em semana de provas na faculdade e dediquei-me exclusivamente ao Direito por cerca de três semanas. Assim que as provas terminaram, fiquei – e ainda estou – doente. Uma gripe que teima em continuar comigo me assola. Então, assim que eu sarar, voltarei a atualizar o blog normalmente. Conto com a paciência de vocês!
Forte abraço!

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A chuva e o colchão


Fui à janela olhar o tempo e vi uma forte chuva cair. Os pingos caiam na telha com harmonia e precisão dignas de uma orquestra. O vento gelado que soprava fez-me tiritar e senti um arrepio que eriçou os pelos do corpo todo. Experimentei certa melancolia por estar preso dentro de casa, sem esperança de sair. Resolvi voltar para a sala e, quiçá, assistir um filme, afinal, o clima pedia um filme. Abri a porta da sala e a vi deitada no colchão que havíamos posto no chão. Ela estava deitada de lado, com uma diáfana coberta que me permitia ver toda a sua silhueta. E como ela era sensual! A moça, então, virou-se para mim, puxou a diáfana coberta – numa sugestão para que eu deitasse – e disse: “volte para o colchão”. Assim que falou, deu um sorriso que me corrompeu. Pedi a Deus para que chovesse por uma semana sem parar.

domingo, 23 de setembro de 2012

A disputa eleitoral mirantense


Já nas primeiras linhas eu advirto que não tratarei do mérito de cada candidato, mas, sim da corrida, da disputa eleitoral pelo cargo máximo do poder executivo municipal. Os defeitos e qualidades, os acertos e os erros, o que um candidato pode fazer ou não, deixo para que os próprios digam. Alerto, ainda no primeiro parágrafo, que não sou partidário de nenhum dos candidatos e não tenho por escopo enaltecer um ou depreciar outro candidato a prefeito ou a vareador. Nas linhas a seguir tratarei apenas dos pontos em comum entre a maioria dos candidatos.

A receita seguida para a propaganda e a visibilidade dos candidatos é a mesma de sempre: jingles, adesivos, santinhos, visitas e coisas do tipo. Não vejo problema no tipo de propaganda que praticamente todos os candidatos – quando digo “candidatos”, refiro-me a candidato a prefeito, vice-prefeito e a vereador – escolheram. Até acho que não escolheram tão mal, afinal, essa receita sempre funcionou. Evidente que um pouco mais de criatividade deixaria a disputa bem mais interessante. Se o candidato criasse algo de diferente para divulgar a própria imagem e as ideias, não tenho dúvidas de que ele seria mais comentado e, por conseguinte, teria mais visibilidade, obtendo vantagem sobre os demais candidatos. Não é segredo que uma grande visibilidade na campanha eleitoral gera o comentário de que o candidato “está bem”, ou seja, que é muito popular e com grandes chances de vencer a disputa eleitoral. E não há poder maior para angariar votos do que parecer estar à frente na corrida eleitoral, mesmo que não esteja. Propaganda é tudo.

Os candidatos poderiam surpreender não só na campanha, mas, também, nas propostas. Mesmo que não tenham intenção de fazer algo por alguma coisa, ficar repetindo que “fará mais pela saúde e a educação” evidencia uma enorme falta de criatividade e de propostas. Sinceramente, o que me parece é que o candidato sequer sabe por que quer ser vereador ou prefeito, e pensa: “aaaa, fala que eu vou fazer mais pela saúde e pela educação!”. Ademais, fazer mais pela saúde e pela educação não é tão fácil quanto parece, não basta ser eleito prefeito ou vereador para se fazer mais pela educação. De início, a dificuldade maior está no pouco poder que o município possui. Apesar de a Constituição Federal garantir certa soberania aos municípios, não é suficiente para que um município pequeno e pobre como Mirante do Paranapanema tome as próprias diretrizes acerca do que quer que seja. Além do mais, há uma grande concentração de poder nas mãos do governo do estado e do governo Federal. Estes dois têm poder para traçar o rumo de um município, e mais força ainda se o município for de proporção mirantense. Ao contrário do que se espera de uma Federação (a junção de vários estados, como, por exemplo, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e os demais estados, forma a Federação) não vejo uma regionalização do poder. Sendo assim, sem que o candidato tenha uma grande influência com gente mais poderosa que ele, não posso acreditar que fará mais pela saúde ou pela educação apenas por que o santinho dele promete.

Voltemos aos jingles. Sempre gostei dos jingles, alguns são engraçados e realmente cumprem a razão de existir: grudar na cabeça e fazer o eleitor lembrar-se do candidato e, principalmente, do número a ser teclado na urna. Outros jingles, pelo contrário, são horríveis e anunciados pela cidade inteira através de um som de péssima qualidade. Mesmo que o jingle seja bom ou ruim, esteja num excelente ou num péssimo som, andar pelas ruas a 22 KM/H e o jingle num volume ensurdecedor não ajudará a atrair eleitores. Isso é indiscutível. O som, na maior das alturas, atrapalha a paz de espírito, atrapalha o sossego, atrapalha a concentração no trabalho, atrapalha a concentração nos estudos, atrapalha a concentração de olhar para uma parede. E – exceto aqueles que já eram adeptos do “sonzão de carro” – ninguém gosta, ninguém acha engraçado, ninguém sente prazer quando um carro com um som num volume irritante passa. Então, não coloquem os jingles numa altura para que surdos ouçam. Se o jingle for bom e anunciado numa altura agradável, será aceito com maior facilidade.

As carreatas estão sendo usadas mais do que nunca. Não nego que elas sejam eficientes para dar visibilidade e uma impressão de que fulano está na frente na corrida eleitoral. Porém, basear a campanha como se a o voto devesse ser decidido a partir de quem tem uma maior carreata é ridículo. Não digo por dizer, é só olhar o maior veículo de informação de nosso tempo: o Facebook. Nos compartilhamentos há comparações de ambos os lados sobre qual candidato é melhor porque a carreata ou o comício foi maior. Não creio que a disputa eleitoral deva ser baseada na quantidade de pessoas numa carreata ou num comício. Carretas com fogos: próximo parágrafo.

As carreatas com os fogos – em especial os fogos – não seriam problema se não acontecessem também nos sábados e nos domingos no período da manhã. Sem dúvida, os fogos de manhã irritam colossalmente. Não vejo como os candidatos puderam imaginar que soltando fogos a partir das oito horas da manhã de um sábado ou de um domingo poderiam angariar votos. Tomarei meu exemplo para demonstrar o ridículo raciocínio estratégico: Segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira meu dia começa às oito da manhã e só para de verdade às onze horas da noite. Acordo cedo para trabalhar o dia inteiro e, durante a noite, estudo em Presidente Prudente. Esta rotina não seria um problema se eu não fosse um homem de insônias desesperadoras. Sem saber o motivo, diariamente demoro um tempo enorme para começar a dormir e tenho que acordar cedo, o que me priva de preciosas horas de sono durante toda a semana. Qual a melhor solução? Dormir até mais tarde no sábado e no domingo, evidentemente. Porém, infelizmente, os candidatos de ambas as partes não permitem que eu e milhares de trabalhadores descansemos nos dois únicos ou, para quem trabalha no sábado, no único dia da semana disponível para dormir até mais tarde, e verdade seja dita: todos gostam de dormir até mais tarde. O que ninguém gosta – eu garanto – é de ser acordado às oito horas da manhã do sábado e do domingo, porque, como resultado, não será possível descansar para recomeçar a semana.

Mas, para a saúde do sono de milhares de trabalhadores, dia sete de outubro isso tudo acabará. Ou não.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Sábia decisão


Cinco, seis, sete... Há quantos anos foi o nosso último “até logo”? Sinceramente, não me lembro. Lembro-me, porém, que, depois desse último ‘até logo’, nunca mais te vi, nunca mais cruzei o meu olhar com o seu, e não me importava. O que rolou entre nós dois no passado ficou. Naquele dia, entretanto, por obra do acaso, eu estava parado na rua, apenas olhando as pessoas passarem e te vi passar. Meu coração, em verdade, bateu mais forte e mais intenso. Você estava linda e maravilhosa, mas estava de mãos dadas com um talvez namorado. E como você parecia feliz! Feliz de uma maneira que eu nunca havia visto. Senti uma pontada de inveja e de ciúmes por nunca ter feito-a tão feliz. Continuei parado, apenas olhando. Não me dei ao direito de meter-me na sua vida outra vez.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Amor próprio


Ainda que inconscientemente, Dírio era um apaixonado sem critério. Toda a paixão que acometia o rapaz seria excelente se não fosse uma paixão de cegar, dessas que deixam a pessoa boba, incapaz de raciocinar, anulando o cérebro e colocando o coração no comando. Como não poderia ser diferente, ao final da terceira ficada, pedia a pequena em namoro. Dírio era de um romantismo ímpar, sem dúvida. Mas, infelizmente, o romantismo não o salvara das ilusões e decepções.

Uma recente ex-namorada, a Renatinha, conseguiu mexer com os parafusos de Dírio até demais. O namoro começou bem, o problema mesmo foi o final. De início, o casal era apenas mimos. Dírio não se controlava e, com uma pontualidade sacrossanta, enviava chocolates e flores para a namorada todas as terças e sábados. Renatinha sentia-se especial, única, uma querida. Com certa vaidade, numa terça ou num sábado, Renatinha chamava uma amiga à sua casa para presenciar o infalível bouquet com chocolates. Assim que o carro da floricultura encostou ela cutucou a amiga:

– Olha! Olha! Eu não disse que vinha?! Não falha!
A amiga, com uma pontada de inveja, retorquia: – Que cosia mais chata um bouquet com chocolates. Das duas, uma: ou ele quer te ver gorda, ou ele é gay. Essa coisa de mandar flores só pode ser coisa de gay!

Como começaram a namorar depois da esmagadora onda das mensagens sms, não eram diferentes de outros casais e passavam o dia inteiro trocando sms com uma pertinácia incrível. Se num dia trocassem 100 mensagens, uma possível crise havia se instalado. Dírio já era doutor em enviar sms: enviava jantando, estudando, caminhando, pedalando. Diziam que ele podia enviar sms até dormindo – verdade ou não, não vem ao caso. Mas aconteceu o inevitável: no fim do terceiro mês de namoro, Renatinha já nao comia todos os chocolates, com medo de engordar, e as flores já não cabiam na sua casa, que mais parecia um jardim florido. A mãe da garota precisava, não raras vezes, queimar alguns bouquets por não haver mais espaço na casa. E a curiosidade instalou-se na garota. Renatinha chamou o namorado e, de imediato, perguntou-lhe:

– Dírio, que coisa é essa das flores?
Espantado, o rapaz pergunta, sem entender: – Como assim “essa coisa das flores?”. Você não gosta de flores? Todas as mulheres gostam de flores.
– Gostar eu até gosto, mas minha casa tem mais flores que velório de gente famosa. Desse jeito não da, meu filho.
– Se não gosta, eu posso parar de mandar.

Com o ardil de um ninja tecnológico, Dírio envia um sms para Renatinha, sem que a namorada percebesse: “se vc ñ qr mais, eu paro de mandar =p”. A namorada pede um minuto, pois queria conferir a mensagem que recebeu. Assim que lê, ela exaspera-se:

– Meu Deus! Essa coisa de mensagem também me irrita! Você não sabe usar a boca? Só fala com os dedos!
– Achei que você gostasse, meu amor. Você sempre responde...
– Respondia por pura educação. Ok, admito: no começo é até “legalzinho”, mas, com o tempo, isso enche! Você nunca me telefonou! Só manda mensagem! Não acredito em homem que só mande mensagem!
– Mas... – Renatinha interrompe.
– Sem “mas”. Eu quero terminar nosso namoro. Está chato e sem graça. Quero ser livre, Dírio!
– Mas... – Dírio estava choramingando – Mas eu te amo! Não termine!
– Ai, Dírio! Você me quer bem?
– É lógico!
– Então vamos terminar. Só vou ficar bem se terminarmos.

E Renatinha era irredutível. Dírio tentou com todas as forças convencer a ex-namorada de que cometia um erro, mas não conseguiu. Com o coração partido, Dírio jurou nunca mais amar outra mulher. Jurou, também, que não mais teria qualquer contato com Renatinha, a mulher que estraçalhou o seu coração. Em verdade, Dírio cumpria a promessa, mas a cumpria apenas durante o dia e quando estava sóbrio. Quando a noite chegava, o rapaz era tomado pela sensação de abandono, de rejeição, pela sensação de “ninguém gosta de mim” e fraquejava. Tentando contrariar a ex-namorada, arriscava uma ligação. Dírio gastava cerca de quinze minutos apenas olhando o nome de Renatinha na lista telefônica, criando coragem para apertar a tecla de discagem. Quando encontrava coragem – sabe-se lá de onde – colocava o celular na orelha e, a cada “tuuuu”, torcia para que a ex-namorada não atendesse, afinal, o que diria? E Renatinha, malandra sem saber que era, não atendia as ligações. Assim que a chamada caia, Dírio era tomada por uma estranha dupla sensação: alívio por ter ligado e feito a parte que lhe cabia, mas ainda mais triste por ter lhe sido negado um mísero “alô”.

O comentário da pequena cidade era que Dírio passou a beber por causa da ex-namorada, o que não passava de uma mentira. O rapaz já era iniciado no álcool. Com o fim do namoro, Dírio apenas aumentou a quantidade de álcool semanal e perdeu a vergonha de embriagar-se em público. Passou a ser um bêbado imoral, ressentido, machucado; um bêbado que bebia sozinho na mesa. Completado dois meses de solteirice forçada, Dírio estava mais pálido, a barba sempre por fazer e um olhar distante, como se tentasse, através das sólidas paredes de concreto, encontrar Renatinha.

Num domingo qualquer, Dírio inicia a cruzada alcoólica depois do almoço – diga-se de passagem que o rapaz havia criado uma resistência ao álcool digna de dar inveja ao boêmio mais antigo. Como não podia ser diferente, foi beber sozinho, na mesa do canto, encostada na parede, de onde podia ser ignorado por todos e, ao mesmo tempo, podia ver a rua. Já de noite, um amigo de Dírio passava pelo bar e viu o coitado na sua solidão de bêbado e decidiu fazer companhia para o amigo e, quem sabe, dar uns conselhos para que o rapaz melhorasse. Sem pedir licença, Ulisses, o amigo, juntou-se à mesa de Dírio e interrogou-o:

– Rapaz, você está sumido! Como você está?
– Não existo mais paro o mundo – Dírio fez a confissão. – Não está vendo como estou? Estou acabado.
– Ora essa! Pare de drama, Dírio! O pessoal está sentindo a sua falta.
– Morri para o mundo.
– Estão preocupados com você, rapaz!
– Não deveriam. Minha razão de existir era Renatinha e ela me deixou. Não me resta mais nada.
– Essa moça mexeu com você!
– Mexeu comigo?! – Dírio explodiu – Eu amava, ou melhor: ainda amo Renatinha! E Ela me deixou assim, do nada.
– Te ver nessa autoflagelação é de partir o coração!
– Não me fale em coração partido, por favor.
– Vamos para alguma festa, Dírio. Garanto que você vai encontrar uma mulher bem ajeitada e passar bem essa noite – o amigo falava com um tom conselheiro, mas cafajeste.

A conversa foi se desenrolando por mais de duas horas e Dírio parecia ser irredutível. Ulisses já perdia as esperanças e imaginava o amigo vivendo naquela tristeza para sempre e além da morte. Mas, entre um copo de cerveja e outro, mesmo sem perceber, Ulisses deu um palpite que mexeu com Dírio:

– Você poderia usar todo esse amor para ter amor próprio!

Dírio parou e pensou, como se tivesse os olhos abertos para a verdade. Abrindo um largo sorriso, respondeu:

– Mas é evidente, Ulisses! Eu preciso usar esse amor é comigo mesmo e não com a safada da Renatinha!
Radiante por ter tirado o amigo da fossa, Ulisses concordou: – Seu amor é só para você mesmo! Você precisa gostar de você mesmo!
– Isso, exatamente: gostar de mim! A partir de agora, eu gosto é de mim! Eu gosto de mim, Ulisses! Eu gosto é de mim!

Na mesa houve uma comemoração sem par. Os dois amigos se abraçavam e brindavam o “eu gosto de mim”. A vibração era comovente e um garçom juntou-se para comemorar a nova vida de Dírio, uma vida de amor próprio. Assim que se acalmaram um pouco, Dírio confessou:

– Ulisses, não sei como eu não havia pensado nisso antes! – Dírio falava com o ar da verdade momentânea do bêbado.
– Você estava mais preocupado com a própria degeneração, rapaz!
– Tanto faz. O importante é que, de agora em diante, eu gosto é de mim! É Tão óbvio: o amor do homem foi feito para que ele ame a si mesmo!
– Mas e a mulher? – Ulisses perguntou, incerto da afirmação de Dírio, afirmação que ele mesmo fez nascer.
– Para a mulher não sobra nada. A mulher é um depósito de espermatozoides. Quando nossos desejos mais primitivos tomam conta, precisamos da mulher. Mas é só para isso! Amor mesmo é amor próprio!
– Complicado! – Ulisses coçava a cabeça.
– Eu quero te agradecer, Ulisses, por ter me salvado! – Dírio levantou e deu um beijo na testa do amigo, em sinal de eterna gratidão.

Antes que pudesse sentar, um “TOC TOC” ensurdeceu o bar. O “TOC TOC” reinava soberano e, nem Dírio, nem Ulisses, sabiam do que se tratava. O barulho foi ficando mais audível e ambos concluíram, sem falar nada, que era um caminhar. Parecia, até, o trote de uma égua adestrada. O “TOC TOC” era forte e intenso, com batidas cronometradas. Dírio sentou-se na cadeira de plástico e olhou para a porta para conferir do que se tratava. O “TOC TOC” cruzou a porta do bar e era ela. Renatinha estava com saltos que faziam seu caminhar emitir um “TOC TOC” poderoso e excitante. Renatinha provavelmente, pelo horário e pela direção, saia da igreja, mas suas roupas não eram de alguém que estava na igreja, pedindo perdão pelos pecados: eram roupas de uma pecadora confessa e nata. O vestido preto, justo ao corpo, desenhava uma silhueta perfeita, com curvas feitas sob encomenda; as pernas, visíveis dez dedos acima do joelho, eram torneadas de maneira feminina, sem músculos definidos, mas eram pernas firmes e livres de qualquer pêlo. O “TOC TOC” e o vestido que dava contorno preciso à silhueta mexeram com toda a certeza que havia dentro de Dírio, que disse para o amigo:

– Ulisses, eu gosto de mim é o caralho! Eu gosto é dela!

E Dírio saiu da mesa, ainda sem pagar a conta, em direção ao seu amor perdido e, quiçá, doentio.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Espetáculo inenarrável


Acordou extasiado, nas nuvens, quase em outra dimensão. Manteve os olhos fechados por alguns minutos, na tentativa de voltar ao sonho que tivera. Não conseguiu e passou a relembrar do maravilhoso sonho. Era incrível a riqueza dos detalhes: – No sonho, passou a noite com a mulher que desejava, que amava. Teve a noite de amor mais verdadeira de sua vida e seria um pecado nefando chamar aquilo de sexo: era amor e apenas amor –. O relógio marcava dez horas da manhã de um sábado quando ele decidiu levantar e comer alguma coisa. Ao chegar à cozinha, estacou e esbugalhou os olhos. A mulher do sonho estava ali, preparando o café, apenas de calcinha e com uma de suas camisas sociais. A mulher era um espetáculo inenarrável. Não foi sonho.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Não desejo um mundo melhor


Sem cerimônia, confesso: eu não desejo um mundo melhor. Não perderei o meu tempo desejando o impossível do impossível. Os cretinos de plantão objetarão: “Nós devemos sempre desejar o impossível, o improvável” e eles não estão totalmente equivocados. O problema é não saber que essa manjada expressão, essa frase pronta, é uma metáfora, uma figura de linguagem, que tem por escopo dar-nos ânimo e perseverança para buscarmos aquilo que almejamos do fundo de coração, mas que é de difícil alcance, sendo quase impossível a realização do desejo. “Sempre desejar o impossível” não tem a ver com tentar cavar um buraco para chegar ao Japão utilizando uma pá.

Tentar construir um mundo melhor é, sem sombra de dúvida, tentar, em posse apenas de uma pá, cavar um buraco até o Japão. Qualquer projeto, qualquer objetivo, que dependa da participação e da dedicação de mais alguém, além de você mesmo, tem uma grande chance de dar errado, total ou parcialmente. Agora imagine algo que dependa da boa vontade de mais de 6 bilhões de pessoas, afinal, o mundo só pode ser um lugar melhor se todas as pessoas que nele residem trabalharem para o bem.  Aquele que acredita que tornará o mundo um lugar melhor é demasiadamente leviano. Grandes mentes tiveram contribuições inimagináveis para que as pessoas fossem um pouco melhor – seja de qual maneira for: enriquecendo a cultura alheia, traçando diretrizes de vida ou sendo exemplos – mas não conseguiram, e nem tentaram, que o mundo fosse melhor. Na verdade, até onde sei, grandes eruditos, como Newton, Adam Smith, Aristóteles, Einsten, Galileu Galilei, entre outros, passaram a maior parte de suas vias preocupados apenas com o próprio mundo, tentando resolver as equações que a vida lhes proporcionava, sem tentar que o mundo fosse melhor e, no entanto, deram contribuições infinitamente mais importante para a humanidade do que qualquer um que venda qualquer ideia para tornar o mundo um lugar melhor.

A única coisa que me parece viável, ante a nossa insignificância numa perspectiva mundial, é uma mudança no próprio indivíduo para que este – sendo muito otimista – torne o local que o rodeia melhor, e – sendo mais otimista ainda – que contagie outras pessoas para que façam o mesmo. Digo que é necessário ser muito otimista porque a mudança necessária para fazer-se melhor, e possivelmente fazer nascer em outra pessoa a vontade de também ser melhor, é cansativa, desgastante, por vezes frustrante, é traçada num caminho amargo e cruel, faz com que seja necessário abrir mão de coisas que são valiosas, não raras vezes exige que demos o braço a torcer, e acaba por tornar o sujeito mais chato e evitável. E eu desconheço alguém que venda ideias de um mundo melhor que tenha passado pelo caminho citado ou que realmente estava mais preocupado com o próximo – ou os mais de 6 bilhões de próximos – a ponto de lutar por um mundo melhor.

Inegável que há pessoas boas por natureza, que tentam fazer algo pelo próximo, mas inegável também que há pessoas preocupadas apenas com desejos egoísticos e mundanos e que, para a realização destes ignóbeis desejos, acabam por tornar o “mundo” – entre aspas pois não me refiro ao mundo em sentido global – um lugar pior e mais cruel. E tenham certeza de que más ações, intencionais ou não, têm mais poder e afetação por maior tempo do que boas ações. As más ações, de certa forma, são mais fáceis de serem atingidas: para que uma ação bem intencionada se concretize é necessária uma dedicação colossal em meio a um estado de coisas que a todo o momento conspira para que o projeto não se realize. E, caso seja realizado, só perdurará se outras pessoas estiverem dispostas a ter uma dedicação igual ou superior.

Mesmo com tanta dificuldade, eu acredito que valha a pena passar por tanta dificuldade na tentativa de transformar-se. A sensação de trabalho feito, de reconhecimento verdadeiro, de missão cumprida, faz com que esqueçamos as dificuldades passadas e apreciemos o gostinho da vitória com um prazer ímpar. E não importa de que tamanho a vitória seja, pois ainda que nos pareça uma vitória colossal, haverá pessoas dispostas a diminuir a conquista, menosprezando os méritos conquistados. Ignorar esse tipo de deboche é necessário e um pouco difícil. Para conseguir ignorá-los, é necessário sempre agir com sinceridade para poder olhar no fundo da alma, avaliar as atitudes e as ações, e ter a certeza de que o trabalho realizado foi, sim, de grande importância.

A derretida

A garota era a fim do rapaz, mesmo que não confessasse. Era a fim, mas também era tímida. Na presença do desejado, ficava muda, parada, transformava-se numa espécie de estátua. Meio que empurrada pelas amigas, marcou um encontro com o garoto, que devia ter quase a mesma idade. Já juntos, em menos de cinco minutos, ambos estavam unidos pelo entrelace das línguas, num beijo juvenil e molhado. Sem aviso prévio, o rapaz beija o pescoço da pequena. Ela tentou, mas sem sucesso, evitar o beijo. Sentiu o eriçar dos pêlos, o frio que começou na barriga e foi até a garganta, as pernas que tremeram e o chão que lhe faltou. Era uma sensação nova e diferente, mas totalmente excitante e que a envolveu. A garota derreteu-se.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Me dê motivo


Um conto baseado na belíssima canção “Me dê motivo”, do saudoso Tim Maia.

Natanael era um apaixonado confesso, desses que já nascem amando. O rapaz, que contava cerca de 27 anos, amou loucamente suas duas ou três namoradas anteriores. Para muitos, era tido como um leviano que não media as consequências de amar tão intensamente. A Natanael nada disso importava, pois só tinha olhos para sua nova e belíssima namorada: Jovelina. Esta, menina sapiente, de família bem formada e sólida, à época era uma garota de seus 21 anos. Inegável que o casal estava apaixonado e Natanael, numa conversa com um primo, não fazia questão de esconder o fato:

– É isso mesmo que eu estou dizendo, Pacheco: amo aquela pequena!
– Não estou dizendo o contrário, meu primo. Estou dizendo que você deve ter mais cuidado ao amar. Devemos viver o amor, mas com cautela.
– Ter cautela para amar? – Natanael retorquiu. – Não tenha cautela no amor e faço questão de não ter! Pode parecer engraçado, mas eu sinto – e fico pensando – que amo Jovelina e que ela também me ama!
– Pode até ser e eu não estou dizendo o contrário – Pacheco advertiu. – Mas você precisa de mais! Precisa encontrar algo mais para a sua vida!
– Discordo totalmente. Eu já encontrei tudo o que a vida poderia me oferecer: Jovelina e o amor.
– Como você é ingênuo, meu primo! E o que pretende fazer com “tudo isso”?
– Já tenho os meus planos. Chega uma hora que o homem precisa sossegar e a minha hora chegou. A partir do amor que une Jovelina a mim, eu construí os meus sonhos, construí castelos. Eu criei um mundo de encanto onde tudo é belo! Tudo é belo, compreendeu?
– Olha, meu querido primo, invejo-te por ser tão otimista e por ter tanto amor. Um calejado, como eu, já não tem muito amor no peito. Mas já tive amor demasia para dar e vivi a experiência que você está vivendo. O que posso lhe dizer – e que sirva como conselho – é que você vive esse mundo de encantos por tempo determinado. Você vai viver seu mundo de encantos onde tudo é belo até o dia em que a mulher que você ama vacilar e por tudo a perder. Não há remédio: ela vai por tudo a perder! Não tenha dúvida!

Natanael, como dito no início, era um louco apaixonado, mas conservava a virtude da cautela. Como se fossem tangíveis, o rapaz apanhou as palavras do primo e guardou-as no bolso, para, quiçá, refletir.  Mas quem é que consegue refletir sobre alguma coisa quando o ser amado está por perto? A verdade é que Natanael era cego de paixão. O rapaz amava com todas as forças e com todo o coração. Dizia ele que só poderia amar se fosse numa total entrega. Mesmo inconscientemente, o que Natanael pensava era que, se usasse todo o amor de seu coração de uma só vez, e fosse magoado, não teria problema, afinal, depois da decepção, já não restaria amor para martiriza-lo. Se o rapaz estava certo ou não, não nos interessa.

Jocelina, a bela e jovem Jovelina. Sua beleza era algo intrigante: não usava maquiagens. Ou melhor: usava apenas um lápis no olho, se muito. E, mesmo com a escassez de pintura, era dona de um rosto sem igual, um rosto feito sob encomenda. A beleza de Jovelina, diziam alguns, era algo em busca de definição, pois nenhuma palavra conhecida pela língua dos homens poderia ser um adjetivo à altura. Incontestavelmente, Jovelina era bela e não mais discutirei sua beleza. Era bela, mas ainda jovem demais para compreender a profundidade do amor, a profundidade de um Natanael. Movida pela ingenuidade juvenil, no que tange ao amor, disse para Natanael, no meio de um desses encontros de namorado:

– Natanael, querido... – Jovelina disse melancólica, talvez com vergonha ou medo do que diria.
– Pode falar, minha linda.
– Não vou dar rodeios: acho melhor terminarmos nosso namoro.
Caindo das nuvens e sem saber o que fazer, Natanael apenas perguntou: – Mas terminar? Porque terminar o namoro?
– Eu não sei direito, Natanael. Parece que já não há mais nada entre nós. Acho melhor terminarmos.
– Não há nada entre nós? – Indignou-se – Eu te amo como nunca, nós nos damos bem e você diz que não há nada entre nós?!
 – Eu não sei explicar, Natanael. Desculpe-me.
– Não posso desculpá-la. Eu quero um motivo. Vamos, me dê motivo!
– Não há motivo. Só não quero mais namorar com você. Acho melhor você ir.
– Me dê motivo para ir embora! – Natanael fala olhando para o céu – Oh, Deus! Estou vendo a hora de perder minha namorada!
– Por favor, Natanael, não torne as coisas mais difíceis para mim!
– Difíceis para você, Jovelina? Tu és a mulher que eu amo e assim, do nada, diz que devemos terminar e que eu devo ir! Um motivo, Jovelina, eu imploro-lhe apenas um único, escasso, u humilhante motivo. Mas me dê motivo! – Natanael sente uma tremenda vontade de chorar, mas engole o pranto.
– Não tenho motivos para dar-lhe.
– Acho que só resta-me ir embora. O que fazer? Eu vou, mas não faz sentido... – Àquela altura, Natanael já não conseguia esconder o choro e acabou rompendo-se num pranto quase infantil, mas um pranto verdadeiro e comovente, um pranto que, ao invés de derramar lágrimas, derramava pequenas partes do recém-partido coração. Até o mais frio dos homens choraria, afinal, é nessa hora que o homem chora.
– Não chore, Natanael, não chore. Eu não queria magoá-lo! – Em vão, Jocelina tentou consolar o inconsolável Natanael.
– A dor... – Entre prantos, Natanael disse – A dor é forte demais para mim!
– Acredite: Para mim também é uma dor forte.
– Mentira sua, Jocelina. – Recompondo-se do choro, ele pergunta: – É isso mesmo que você deseja? Deseja que terminemos o namoro? Mas, antes que responda, eu advirto-a: caso a resposta seja que “sim”, não terá mais volta.
– É isso mesmo que eu desejo, Natanael. Infelizmente, é isso mesmo!

Natanael busca forças para dar a sentença de fim de namoro. Mas uma sentença digna de um romântico. Como era um perfeccionista e gostava de falar para que não houvesse dúvidas, por algum tempo ficou calado e apenas pensando. De repente, toma fôlego e diz à ex-namorada:

– Não tenho como mudar sua opinião e não desejo ter ao meu lado alguém que não me deseje. E, já que você quis assim, tudo bem, sem problemas. Mas é cada um para o seu lado. Não vou ficar triste, pois a vida é assim mesmo. Quer saber de uma coisa? Eu perdi meu tempo com você, Jocelina. Perdi tempo amando alguém que não me amava.
– Eu te amei! – Jocelina interrompeu.
– Não fale, apenas escute. Você não me amou. O amor não pode acabar de repente e sem um motivo digno. Mas, tudo bem, sem problema algum. Como eu disse, é cada um para o seu lado. Entretanto, eu peço que não mais me procure, pois eu vou atrás de alguém melhor que você e tenho a certeza de que encontrarei!
– Natanael...
– Sinceramente, eu espero que seja feliz nesse seu novo caminho, afinal, ficar contigo já não faz mais sentido. Vai ser melhor assim.

Afogado numa tristeza inenarrável, Natanael meio que sumiu da vida de Jocelina. O desejo do rapaz era, a todo custo, esquecer a pequena que amara, matar as lembranças dos bons momentos que passaram juntos. Contudo, Natanael sabia que as lembranças são imortais e não admitem serem esquecidas. O máximo que o rapaz poderia fazer era escondê-las em algum lugar da cabeça. Porém – sempre há um porém – elas ficariam algures esperando o estímulo certo para tomarem vida novamente. Entre os conhecidos de Jocelina, ninguém, há pelo menos três meses, havia visto ou tido notícias de Natanael. Fato este que despertou na moça preocupação para com o ex-namorado. – “E se ele tiver acabado com a própria vida?” – devaneava. A verdade é que Natanael, apesar das feridas que a vida lhe causara, era um apaixonado pelo ato de viver e jamais acabaria com a própria vida.

A pontada de preocupação de Jovelina – sabe-se lá por que – pouco a pouco foi transformando-se em amor. Aquele amor, que ela jurava ter acabado, queimava num fogo diáfano, ainda em brasas, quase sem força. Ao sentir-se preocupada com o paradeiro do ex-namorado, Jovelina, sem saber, nutriu a ínfima labareda que ardia discreta, escondida, esperando a fagulha certa para voltar a queimar como se fosse um incêndio de amor. E, neste incêndio, Jocelina queimou-se por inteira e se viu novamente apaixonada pelo homem que outrora pediu que deixasse a sua vida. Desesperada de amor, teve a certeza que o melhor a ser fazer era encontrar Natanael novamente e pedir-lhe para voltar a namorar. E foi o que Jovelina fez.

Após algumas pesquisas, descobriu o paradeiro do desiludido Natanael. Diga-se de passagem, Jovelina não era exceção e não sabia como dar início à conversa. Trancada no próprio quarto, ensaiou incansavelmente todo o discurso. Fazia gestos, caras e bocas. Precisa decorar o roteiro e torcer para que Natanael o seguisse. Pois bem, três dias depois dos ensaios, Jovelina tomou toda a coragem do mundo e, de cara lisa, foi parar de frente à porta da casa do ex. Desejando a volta do relacionamento, mas com medo da conversa, ela chama o rapaz. Assim que vê Jovelina parada na calçada, Natanael não acredita na cena, mas, como um bom moço educado, foi atender e ouvir o que a ex-namorada tinha a dizer. Sem hesitar, Jovelina dispara:

– Perder-te foi um erro enorme, Natanael! Volte para mim, por favor! – Jovelina dizia quase suplicando o perdão de Natanael.
– Calma lá! – Natanael ponderou. – Você não pode, depois de tudo que me fez, aparecer aqui e simplesmente pedir para voltar!
– Eu sei que errei, mas perdoe-me!
– Me dê motivo para perdoá-la, Jovelina. Me dê motivo! Você fez um jogo sujo comigo.
– Eu me arrependo! Você ainda gosta de mim? – Jocelina falava parecendo que fazia uma aposta.
– Não posso esconder: eu ainda gosto um pouco de ti. Mas agora eu fujo para não sofrer! Escuta: eu fui mais que seu namorado, eu fui seu amigo! Te dei o mundo!
– Eu sei e sinto falta de tudo isso!
– Você não soube dar valor. Você foi fundo e quis me perder.
Em meio ao choro, Jocelina diz: – Eu te amo e sei que é de verdade!
– É uma pena, pois agora é tarde e não tem mais jeito! Para o seu defeito, para o seu erro, não há perdão! Por favor, saia daqui. Eu vou à luta que é a vida curta. Não quero voltar a namorar com você. Não vale a pena sofrer em vão!
– Eu sei que fiz errado, Natanael, mas quero uma chance para fazer certo!
– Pode crer. Você pôs tudo a perder! Tínhamos um mundo lindo pela frente e você pôs tudo a perder!
– Fui ingênua!
– Ingênua ou não, você não podia me fazer o que fez. E, por mais que tente negar, terminou tudo sem motivo. Me dê motivo!
– Olhe no seu coração e encontre a melhor opção, Natanael! Eu te amo!
– Tudo bem, vou olhar. Podes crer. Olhei e te digo: eu vou sair por aí e mostrar que posso, sim, ser bem feliz. E de uma coisa eu tenho certeza: vou encontrar alguém que saiba me dar motivo! Me dar motivo. Era só o que você precisa ter me dado: motivo.

As Narcisas


Ostentava, em todo e qualquer lugar – no celular, nas redes sociais ou no mural do próprio quarto – dezenas de fotos da própria imagem. As poses eram das mais diversas: apenas de rosto, de busto, de corpo inteiro, e qualquer pose que uma câmera digital e a inspiração de namorada lésbica da própria imagem permitiam criar. Se era bela pouco importava para nos agredir com um rajada das próprias fotos. Sua imagem era seu troféu, seu bem mais caro, e ela fazia questão de exibi-la.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Traído, porém feliz


Dagmar e Euzébio eram casados há, pelo menos, uma década. Dizia-se que o casal era do tipo “paradão”, sem nenhuma novidade, sem crises, sem brigas que acordassem os vizinhos.  As fétidas vizinhas de esquina comentavam que talvez o casamento fosse apenas uma faixada, que era algum tipo de negócio imoral ou coisa que o valha. A verdade é que Dagmar e Euzébio não gostavam de experimentar novas experiências, nem aventuras, e estavam consideravelmente felizes com a vida monótona que levavam. O casal parecia ser regido pela burocracia estatal: acordavam sempre no mesmo horário, tomavam café juntos, cada um ia para o seu trabalho e no final da tarde se encontravam novamente. Já em casa, Euzébio cuidava dos bichos e do quintal, enquanto Dagmar preparava o jantar. Não tinham filhos e diziam-se felizes por ainda conservarem a falta de responsabilidade paterna e materna. Numa manhã de sábado, Euzébio propõe uma inovação, uma ousadia:

– Dagmar, sabe o que eu estava pensando?
– O que? – Responde Dagmar sem muita curiosidade ou algum grande interesse.
– Cinema. Vamos ao cinema ver algum filme. Está passando um bom de ação e pensei que seria uma boa irmos juntos. O que acha?
– Cinema? Sei não. Nós nunca saímos e você propõe um cinema, como se fossemos namorados? Fez alguma coisa de errado, Euzébio?
– Ora essa! Não posso levar minha esposa para se divertir sem que eu tenha feito algo de errado?
– Não, não pode. Os homens são assim: nunca querem fazer nada e, quando querem, fizeram alguma coisa de errado. Eu li na revista, Euzébio, eu li!
– Pois continue lendo sua revista que eu vou ao cinema sozinho!

E, de fato, Euzébio foi sozinho ao cinema. Emburrado com a suspeita pueril da esposa, decidiu tomar a decisão mais radical de sua pacata vida: sair sem a companhia da esposa. E, como não poderia ser surpresa, Euzébio não conseguiu assistir ao filme tranquilo. Na cadeira do cinema ele se remexia, impaciente. No fundo, sabia que cometera um erro. Metódico que era, fazia tudo sempre igual e pensava que qualquer alteração nos seus métodos – alguns chamavam de manias – poderia causar uma desgraça, quiçá o fim do mundo; era como se a alteração de suas manias perturbasse as leis e a ordem do universo, assim: sem explicação.
 De volta ao lar, no exato momento em que cruza a porta, Dagmar o recebe com uma pergunta:

– Gostou do seu cineminha? ­– Dagmar dava ênfase demasiada em “cineminha”.
– Um erro. E repito: um erro! – Euzébio confessou do alto de sua estranheza de manias – Fui sozinho e agora tenho a certeza de que uma desgraça vai acontecer.
– Eu te disse que era melhor ter ficado em casa. Eu disse.
– Realmente, você disse. Eu que sou um burro e não ouvi. Perdoe-me, minha esposa, perdoe-me!

Como foi dito no primeiro parágrafo, Dagmar e Euzébio formavam um casal feliz, monótono, mas feliz, e a absolvição de Euzébio foi sumária, célere, sumaríssima! Ali, na porta de entrada da casa, a absolvição foi dada e consumada. Os dois apenas tiveram tempo para fechar a porta, impedindo que os amaldiçoados olhares alheios corroessem o momento de luxúria que estava para se consumar.

Numa manhã de terça-feira, Dagmar acorda mal: olhos lacrimejando, garganta inflamada e dores de cabeça. Ao voltar do banheiro, Euzébio vê o rosto sofrido da mulher e a aconselha a continuar na cama e não ir trabalhar. Dagmar protesta dizendo que não poderia faltar no trabalho, mas Euzébio a convence de que no final do dia a levará ao médico e conseguirão um atestado. Dagmar acaba cedendo e continua a dormir até tarde. Lá pelas 14 e tantas Dagmar sai da cama, sem fome por causa da infecção na garganta. Como passara o dia inteiro deitada, decide ir tomar ar na calçada.

Tanto Dagmar quanto Euzébio eram demasiadamente reservados, não se davam ao luxo de sequer ficar na calçada de bobeira. Em posse de uma cadeira de área, Dagmar vai conferir a novidade que é a calçada. Senta-se debaixo de uma árvore, para aproveitar a sombra, e fica observando os transeuntes. A diversão dela era imaginar o que cada um estava fazendo e o que realmente gostaria de fazer. Sem que Dagmar perceba, uma vizinha de cadeiras largas e com significativo acumulo de gordura na região abdominal se aproxima e investe para saciar a curiosidade:

– Não foi trabalhar hoje, Dagmar?
– Oh, desculpe-me, quem é você?
– Sou a Fulana, sua vizinha de muro.
– A sim. Desculpe-me. É que fico muito em casa em não conheço a vizinhança.
– Eu já havia reparado isso – a vizinha confessa. – Mas, então, não foi trabalhar hoje?
– Pois é! Acordei muito mal da garganta! Não estou conseguindo nem comer, acredita?
– É virose. Nessa época do ano sempre dá virose.
– Pode ser, pode ser.
– E o seu marido? Ele foi trabalhar assim mesmo?
– Foi. Euzébio só quebra a rotina se morrer. Ele é cheio de manias e as conserva até com algum deleite.
– A vida de casado de vocês é uma rotina? – A vizinha pergunta na sua insensível curiosidade.
– É sim – Dagmar confessa numa inocência ímpar.
– Cuidado que casamento que cai na rotina acaba em traição.
– Bobagem. Vivemos na rotina, mas vivemos felizes.
– Você que pensa que é bobagem. Sei muito sobre casamentos e sei que você deve escolher se vai trair ou se vai ser traída. E, quanto antes tomar a decisão, melhor.
– Eu não tenho coragem de trair meu Euzébio. Ele não me dá motivos e eu trairia a troco de que?
– A troco de não ser traída, bobinha. Casamento é isso: um equilibrismo de traições.
– Que visão mais pessimista. Pois fique sabendo que eu não tenho nem um pingo de vontade de trair. Nunca tive e nunca terei!
– Pois eu te aviso: se colocar uma novidade na rotina de vocês, ainda que seja a presença de um amante, o casamento melhora. E você não será a traída. E que mal pode ter um amante? Desde que seu marido não saiba de nada, um amante faz até bem. O amante é quem apimenta a relação. Ter um amante faz você viver a eterna disputa no sexo: quem é melhor? O marido ou o amante? Entendeste?
– Entendi perfeitamente. Entendi que a senhora é meio pirada. Diga-me uma coisa: a senhora trai o seu marido?
– Eu sou viúva, minha filha, viúva!

Dagmar considerou um absurdo as ideias da viúva vizinha gorda. Como um amante poderia deixar o casamento mais interessante? E a ideia de uma competição de sexo fazia Dagmar sentir-se quase uma prostituta. Mas, como se trata de coisas da vida, com o passar do tempo, a ideia da vizinha criou raízes na cabeça de Dagmar. Não só criou raízes como também amadureceu. ­– E há coisa mais difícil de ignorar do que uma ideia fixa? Creio que não. – Num dia qualquer, já totalmente curada da enfermidade que ocasionou o encontro com a viúva, Dagmar prepara a janta, mas a prepara sem dar muita atenção à comida. Seus pensamentos eram mais críticos, mais observadores e mais excitantes. A partir de então, considerou que a vida do casal era realmente uma chatice sem fim, dessas de causar um tédio colossal.

Dagmar era funcionária pública municipal e trabalhava numa seção administrativa da prefeitura. Ociosa numa tarde em que apenas esperava o tempo passar, ela começou a reparar em Oswaldinho, um rapaz mais jovem e de beleza considerável. A partir de então, a mente de Dagmar foi tomada pela ideia maluca da vizinha. Deitar-se com Oswaldinho era o objetivo de Dagmar. – “Quem sabe essa pulada de cerca não coloca mais fogo no meu casamento?” – Pensava Dagmar, na tentativa de encontrar uma justificativa moral para o adultério.

Em poucos dias e com uma astúcia admirável, Dagmar arquiteta todo o seu plano e decide coloca-lo em prática. Como Oswaldinho era um Guardinha – espécie de jovem que faz vários trabalhos administrativos mais chatos ganhando menos do que um empregado de verdade ganharia – ela pede ao garoto que leve alguns processos administrativos para tirar cópias na copiadora, mas na copiadora da sala de Dagmar. Sem nada estranhar, Oswaldinho obedece às ordens e parte para a tarefa. Dagmar preferiu que o garoto entrasse quando a sala estivesse sozinha. Assim, poderia surpreendê-lo. E foi o que fez. Sem imaginar qualquer mal, Oswaldinho adentra a sala de Dagmar e começa a tirar as cópias. Cerca de quatro minutos depois, Dagmar entra na sala, mas entra sorrateira. Sem que Oswaldinho percebesse, ela segura na cintura do rapaz e diz:

– Sabe que eu sempre te achei o mais gatinho de todos os guardinhas dessa prefeitura?
– Que isso, Dona Dagmar? – Oswaldinho responde acanhado.
– Não fique tímido. Sei que você me olha. Ou pensa que eu nunca te peguei olhando para minha bunda quando passo por você?
– Perdão, Dona Dagmar! Perdão! Eu não fiz por mal. Às vezes faço isso sem querer. Desculpe-me!
– Não seja bobo, rapaz! E pare de me chamar de “Dona” Dagmar. É para me chamar apenas de Dagmar, entendido?
– Sim, Dona Dagmar. Desculpe-me! Sim, Dagmar!
– Então, como eu disse, já vi você olhando para a minha bunda. Não é verdade? Você não fica olhando?
– Não... – Oswaldinho responde com a timidez de quem mente, mas não quer mentir.
– Mentiroso. Se você confessar, eu não conto nada ao secretário. Vamos, confesse: você ficava olhando para a minha bunda?
– Sim, eu ficava olhando quando a senhora passava. Dagmar, você é uma mulher atraente, é normal que eu olhe.
– E porque você olhava? Queria pegar nela? – Dagmar pergunta, de maneira sensual, apontando para as próprias nádegas.
Já delirante e possuído pelo desejo, Oswaldinho diz: – Queria, Dagmar, queria muito apertar.
– Pois vamos, aperte minha bunda. Vamos.
– Dagmar, e se alguém ver?
– Ninguém está vendo. Vamos, mostre que tem coragem!
Oswaldinho faz a investida, mas Dagmar desvia do rapaz e diz:
– Queria saber se tinha realmente coragem e agora já sei. Se quiser continuar, apareça em casa amanhã, no horário do expediente.
– Mas como vou estar lá no horário do expediente?
– Isso já é um problema seu. Se quiser continuar, esteja lá, mais precisamente, às 15 horas.
– Mas e o seu marido? Você não é casada?
– Sou, sim. Mas meu marido não vai estar em casa, te garanto. Se quiser, apareça. Tchau, tchau!

No dia seguinte, Dagmar foi trabalhar no período da manhã e sempre que cruzava o olhar com Oswaldinho, punha o rapaz em chamas instantâneas. Antes de sair para o almoço, Dagmar passa na seção de controle do Ponto para avisar que não voltaria no período da tarde e que a ausência deveria descontada depois, de suas férias. Já Oswaldinho, sempre temeroso em levar bronca ou perder o emprego que lhe garantia a compra de futilidades juvenis, preferiu esperar que fosse incumbido de algum trabalho na rua para poder demorar e ir até Dagmar matar seu incontrolável desejo pela luxúria, matar o desejo pela mulher alheia, pela mulher casada.

Pontualmente às 15 horas, Oswaldinho liga para o celular de Dagmar, avisando-a de que estava no portão, esperando para entrar. De imediato, Dagmar abre um pouco a porta da frente, dando o sinal para que o garoto entre. Assim que cruza a porta, Oswaldinho quase cai das próprias pernas: Dagmar estava numa lingerie infernal, daquelas que tirariam do sério até o monge mais concentrado. Oswaldinho não tem dúvidas e investe um beijo desesperado, mas é barrado por Dagmar, que o arrasta para o quarto.

Dentro daquelas quatro paredes houve de quase um tudo. Foram cerca de duas horas de dedicação à luxúria. No final do encontro, Oswaldinho está colocando a roupa maravilhado, encantado com a overdose sexual que experimentara. Estava tão maravilhado, e quase em transe, que se esquecera completamente de voltar para a prefeitura no fim do expediente. Mas naquele momento nada importava. Exausto e com a sinceridade inerente ao bobo apaixonado, Oswaldinho confessa:

– Eu sempre fui louco por você Dagamar!
– Bom saber disso. – Responde Dagmar.
– Você só diz isso? “Bom saber disso”?
– Queria que eu dissesse mais o que, garoto?
– Bom, tanto faz. Amanhã nos encontramos de novo?
– Não sei. Vou pensar no seu caso.

E Dagmar realmente pensou no caso. No dia seguinte, no trabalho, Oswaldinho quis falar com Dagmar:

– Dagmar, eu queria... – Dagmar interrompe.
– Dona Dagmar!
– Mas a senhora disse que era apenas “Dagmar” para mim.
– Pois mudei de ideia!
– Que confusão! Mas nós nos encontraremos hoje de novo?
– Nem hoje, nem nunca mais!
– Mas... – E Oswaldinho ficou com a cara no chão.

A verdade é que Dagmar usou o garoto como um rato de laboratório para saber se a traição realmente inovaria seu casamento, mas nada aconteceu. Enquanto caminhava para chegar ao lar, Dagmar pensa se contaria ou não para Euzébio o que havia acontecido. Assim que chega ao portão de casa, ela tem a conclusão: não contaria nada e nunca mais trairia. Guardaria tudo para si e ninguém nunca saberia do acontecido. Ao chegar à sala da casa, vê Euzébio lendo o jornal. Dagmar pula no colo do marido e mete-lhe um molhado beijo na boca. Euzébio, assustado, com a ação da esposa, pergunta:

– Que isso? Assim, do nada?
– Agora eu sei que te amo de verdade, meu amor!

Dagmar não mentia. Os dois continuaram com a vida monótona que levavam e Euzébio, desde então, passou a ser um marido traído, porém feliz.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O beijo e o céu


Eu sempre a desejei. Educação à parte, eu a devorava com os olhos toda vez que a via. Talvez ela não possuísse os padrões de beleza que fizessem todos enxergarem a perfeição que eu via, sentia, e queria. Mas, naquela mulher, tudo estava em perfeita harmonia, não sendo preciso acrescentar ou retirar qualquer detalhe. Aos olhos do poeta, ela era uma espécie de Deusa. E eu a conquistei. Éramos dois apaixonados inconfessos, mas sem o primeiro beijo, sem o beijo que nos uniria, afinal, o entrelace das línguas sela a união. Numa noite qualquer, sentamos na calçada da casa dela. Fiz uma investida e avancei para beija-la. Mão trêmula, coração à beira de um infarto, respiração quase ofegante. Minha boca estava a menos de cinco centímetros da boca mais bem desenhada, mais perfeita, mais desejável de que se teve notícias. Menos de um segundo separava nós dois de sermos apenas um, unidos pelo beijo apaixonado. Aquele segundo durou décadas, séculos, mas passou. Carinhosamente, a segurei por trás da cabeça, pelos cabelos, e a beijei. Fui aos céus e voltei.

sábado, 25 de agosto de 2012

Somos um só


Casaram-se depois de três anos de namoro. A festa foi simples, na casa do casal, com alguns convidados íntimos. Graça, como não podia ser diferente, queria uma festa cheia de pompa, decorações de fazer os olhos delirarem, Buffet caro e muitas lembrançinhas. O Paiva, um homem que controlava as finanças no casal com obtusa pertinácia, preferiu poupar parte do dinheiro da festa para comprar um carro ou, quem sabe, fazer algum acabamento na casa. Independente da festa escolhida, era inegável a felicidade do casal, dois apaixonados confessos. Há quem diga que se casaram muito cedo. – “Com três anos de namoro você não conhece sequer o passado da noiva!” – comentava a maledicência alheia. O fato desconhecido por muitos era que o casal já se conhecia há, pelo menos, meia década. Passaram alguns anos no anonimato, longe dos comentários das vizinhas gordas.

Dois anos após a simples festinha de casamento, os dois ainda viviam em lua de mel e, talvez, ela estivesse mais viva do que nunca. Paiva conservava alguns caprichos de namorado arcaico, o que fazia Graça perder-se de alegria e, inegavelmente, os caprichos do marido massageavam o ego da jovem esposa. No salão, em meio às fofocas inerentes ao local, Graça dispara:

– Marido igual ao meu não há! E duvido!
– Bobagem. Isso é só no começo. – retrucava uma senhora de aparência sofrida que fazia as unhas
– Fala isso por não conhecer o meu Paiva. Ele ainda me enche de mimos, como se fossemos namorados.
– Então aproveite bem. Logo isso passa e você vai acabar como nós: contente em cuidar da casa.
– Isola! – E deu três “soquinhos” na madeira.

E Paiva orgulhava-se dos caprichos que ainda mantinha. Pensava que o cavalheirismo não poderia, em hipótese alguma, desaparecer. Numa quinta-feira, depois do trabalho, decide chegar em casa mais tarde: foi com os colegas do trabalho ao bar beber e conversar. Após uma ou uma hora e meia de bar, o Mesquita pergunta:

– E então, Paiva, como anda o casamento? Já se arrependeu? – Dá aquela gargalhada enquanto cutuca os outros presentes na mesa, como num convite para também rirem.
– De maneira alguma. Tenho certeza de que tomei a decisão correta.
– Alegria de início, rapaz! Eu também era assim, mas logo isso passa.
– Sei não, Mesquita.
– Escuta, rapaz. Você ainda está maravilhado com a magia do casamento e isso é bom, maravilhoso! Mas isso passa! Depois de acordar de manhã vendo a mesma cara do outro lado da cama, você enjoa.
– Mas Graça é linda. Me diga: como enjoar de um rosto lindo?
– A beleza só pode ser apreciada por um curto período. Depois de algum tempo, a pessoa linda parece normal, como se a beleza dela tivesse acabado.
– Até que faz sentido... – Paiva confessou com cera tristeza.
– Diga a verdade: você já nem acha sua esposa tão linda assim, não é mesmo?
– Acho que um marido não deve responder esse tipo de pergunta.
– Pois pense sobre – O Mesquita aconselhou.
– Pensarei. Mas preciso ir. Alguém pode me dar uma carona?
– Carona?? – Mesquita assustou-se – não veio de carro?
– Não tenho carro – confessou.
– Ora essa, homem sem carro não é homem! Não acredito em homem que não tenha carro!
– Estou economizando para comprar um – Paiva disse meio acanhado.
– Pois não demore! Vamos, eu te levo.

Verdade seja dita. Paiva jamais ligara para o fato de não ter um carro e não se preocupava em ter um tão cedo, pensava haverem coisas mais importantes para ter antes de um carro. Mas as palavras do Mesquita corromperam Paiva, e não há nada mais forte, mais insistente, mais difícil de deixar de lado, do que uma ideia. “Homem sem carro não é homem!”. Estas palavras martelaram a mente do Paiva por algumas semanas.

Numa noite qualquer, o casal jantava, mas Paiva parecia estar presente apenas de corpo, seu olhar era longínquo, como se pensasse em algo o tempo todo. Tomada de curiosidade e de preocupação, Graça pergunta:

 – Amor, o que há com você?
Parecendo que voltava de um transe, Paiva responde – Oi? A, sim. Estou pensando em comprar um carro.
– Um carro? Seria maravilhoso, mas você acha que podemos?
– Se podemos eu não sei, mas sei que devo comprar um carro!
– Posso ajudar a escolher? – Graça pergunta radiante.
– De jeito nenhum! Carro é coisa para homem. Homem, entendeu?
– Quanto machismo, meu amor. Mulher também entende de carros, ora essa!
– Claro que entende. As mulheres entendem de carro tanto quanto um homem entende de bijuterias.
– Mas há homens que entendem de bijuterias.
– Eles não são bem homens, se é que me entende.
– Não importa. Eu quero ir junto com você, afinal, somos casados!
– Vou com o Mesquita. Ele, sim, entende de carros.
– Você se casou com o Mesquita?
– Não amola. Eu não dou palpite na tinta de cabelo que você vai comprar ou com quem vai comprar. E fim de papo. Já está decidido.

E, de fato, Paiva não levou a esposa para escolher o carro. Combinou com o Mesquita de irem à concessionária escolher o veículo. Às oito horas da manhã Mesquita buzina em frente ao portão da casa de Paiva. Este sai com pressa e extasiado. Enfia-se no carro de Mesquita e diz:

– Vamos? Estou muito ansioso! – Dizia sem conseguir esconder o sorriso de alegria
– É pra já, meu caro!

Enquanto não chegavam à concessionária, Paiva ia dizendo:

– Acredita que minha mulher queria ir?
– Ixii, começou a se meter onde não devia.
– Foi o que eu disse para ela. Mulher chata!
– Não liga para esse tipo de coisa. Vocês terão motivos mais interessantes para brigar. – e dá uma gargalhada, daquelas cutucando o colega.

 Na primeira concessionária que entram, Paiva se encanta por um carro. Parecia que um completava o outro. Paiva não tem dúvidas e compra a máquina. A verdade é que Paiva não possuía todo o dinheiro para comprar o carro, mas, no dia anterior, passou numa financeira e adquiriu cerca de R$ 100.000,00. Empréstimo feito, leva sua máquina para casa. No caminho, vai sozinho, aproveitando cada segundo dentro do seu novo carro. Se havia algo mais prazeroso do que dirigir aquela máquina, Paiva se esquecera completamente. Sentado no banco e atrás do volante, o Paiva era uma criança, era só alegria. Parado num semáforo, ele não pode deixar de notar que algumas pessoas invejavam seu carro novo e pensou: “Agora, sim, sou um homem de verdade!”.

Ao chegar em casa, Paiva estaciona o carro na garagem, vai até o outro lado da rua para tomar distância e fica por algum tempo admirando sua nova aquisição. Uma centelha ilumina-lhe as ideias: “Que contraste! Minha casa é bem simples e meu carro tão luxuoso!”. Mas isso pouco importava, pois o importante mesmo era o carro. Enquanto Paiva admirava a máquina, Graça aparece, não menos radiante com a nova aquisição do marido e corre na direção do amado:

– Amor, o carro é lindo! Maravilhoso!
– Eu te falei que era melhor eu ir sozinho! – esboça um leve sorriso.
– Ainda não concordo, mas admito que você escolheu bem!
– Caso você tivesse dado palpite, estaríamos olhando para um Sedan! – e dá risada.
– Não faz drama, criatura! Mas, vamos! Quero dirigir!
– Você quer o que?!
– Dirigir o carro, ora essa!
– Mas nem pensar! O carro ainda está com cheiro de novo e eu não quero que você arranhe ou estrague alguma coisa.

Graça tenta responder alguma coisa, mas não consegue. Ela tinha que escolher: ou engolia o choro, ou falava. A coitada volta para dentro de casa humilhada. E os dias que se seguiram foram mais frustrantes ainda: Paiva só dava atenção ao carro, já não lembrava que tinha esposa, ou por outra, lembrava de Graça quando os desejos do sexo tomavam conta dele. Paiva lavava o carro com mais pertinácia do que quando tomava banho. O carro era impecável, sem nenhum arranhão, nenhum amassado, nem poeira havia no carro. Nos finais de semana Paiva saia com a esposa e esta ficava na dúvida: – “Ele está passeando com o carro ou comigo? Qual de nós ele está exibindo e do que se orgulha?” – Graça martirizava-se em pensamento, sempre numa humilhação profunda. Ela só queria a atenção do marido outra vez, como namorados.

Num dos finais de semana de passeio, Paiva acordou certo em deixar seu carro novo ainda mais bonito, se é que isso era possível. Levanta, escova os dentes, toma o café da manhã sozinho e vai à área da casa admirar o carro antes de começar a enchê-lo de mimos. Ao abrir a porta, Paiva estaca, esbugalha os olhos e reza a Deus para ainda estar dormindo: o carro havia desaparecido! O homem apoia-se na porta para não cair das pernas. Está trêmulo como uma vara verde. Sem pensar duas vezes, sai correndo, ainda com o short do pijama e sem camiseta, até a delegacia para registrar o B.O. e começar a busca implacável pelo automóvel. Ainda na delegacia, recebe uma ligação, olha no celular e era Mesquita. Paiva atende o celular num desespero sem par:

– Alô! Uma desgraça aconteceu, Mesquita! Roubara meu carro! Debaixo do meu nariz e eu não vi nada! Roubaram meu carro!
– Estou sabendo. Acalme-se. Sem querer, encontrei o seu carro.
– Encontrou?? Onde? Fala que eu vou voando!
–Acalma, homem! A notícia não é boa!
– Ai meu Deus! – Paiva senta-se num banquinho e pede água com açúcar para o guardinha. – Fala de uma vez!
– O ladrão bateu o seu carro e não sobrou nada, nem do ladrão nem do seu carro.
– Meu carro! Eu ainda nem terminar de pagar! Vou já! – Paiva desliga o celular sem ver mais nada e toma o primeiro taxi que encontra.

Ao chegar ao local da tragédia, Paiva não quer acreditar. Antes de descer do taxi, viu que seu carro estava uma sucata só, não havia sobrado nada. O comprimento da máquina havia diminuído pela metade. Paiva abre a porta do taxi lentamente, quase desmaiando. Desce e é recebido pelo Mesquita, que fazia um sinal de lamentação com a cabeça. Conforme chegava mais perto da sucata, via pedaços humanos espalhados: um possível braço de um lado, algo que parecia uma mão de outro, couro cabeludo jogado noutro lado. Fosse quem fosse, seria impossível reconhecer o marginal.

Atônito e com náuseas colossais, lembra-se de ligar para a esposa, para perguntar se ela havia visto ou ouvido alguma coisa durante a noite. Em posse do celular, antes de discar vê que havia um sms não lido e o abre para conferir. O sms era de Graça. A angústia, o desespero, a dor e o surto de Paiva não podem ser narrados em linhas. No sms estava escrito: "Eu queria sua atenção e sei que consegui. Eu e seu amado carro agora somos um só".