quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Amor próprio


Ainda que inconscientemente, Dírio era um apaixonado sem critério. Toda a paixão que acometia o rapaz seria excelente se não fosse uma paixão de cegar, dessas que deixam a pessoa boba, incapaz de raciocinar, anulando o cérebro e colocando o coração no comando. Como não poderia ser diferente, ao final da terceira ficada, pedia a pequena em namoro. Dírio era de um romantismo ímpar, sem dúvida. Mas, infelizmente, o romantismo não o salvara das ilusões e decepções.

Uma recente ex-namorada, a Renatinha, conseguiu mexer com os parafusos de Dírio até demais. O namoro começou bem, o problema mesmo foi o final. De início, o casal era apenas mimos. Dírio não se controlava e, com uma pontualidade sacrossanta, enviava chocolates e flores para a namorada todas as terças e sábados. Renatinha sentia-se especial, única, uma querida. Com certa vaidade, numa terça ou num sábado, Renatinha chamava uma amiga à sua casa para presenciar o infalível bouquet com chocolates. Assim que o carro da floricultura encostou ela cutucou a amiga:

– Olha! Olha! Eu não disse que vinha?! Não falha!
A amiga, com uma pontada de inveja, retorquia: – Que cosia mais chata um bouquet com chocolates. Das duas, uma: ou ele quer te ver gorda, ou ele é gay. Essa coisa de mandar flores só pode ser coisa de gay!

Como começaram a namorar depois da esmagadora onda das mensagens sms, não eram diferentes de outros casais e passavam o dia inteiro trocando sms com uma pertinácia incrível. Se num dia trocassem 100 mensagens, uma possível crise havia se instalado. Dírio já era doutor em enviar sms: enviava jantando, estudando, caminhando, pedalando. Diziam que ele podia enviar sms até dormindo – verdade ou não, não vem ao caso. Mas aconteceu o inevitável: no fim do terceiro mês de namoro, Renatinha já nao comia todos os chocolates, com medo de engordar, e as flores já não cabiam na sua casa, que mais parecia um jardim florido. A mãe da garota precisava, não raras vezes, queimar alguns bouquets por não haver mais espaço na casa. E a curiosidade instalou-se na garota. Renatinha chamou o namorado e, de imediato, perguntou-lhe:

– Dírio, que coisa é essa das flores?
Espantado, o rapaz pergunta, sem entender: – Como assim “essa coisa das flores?”. Você não gosta de flores? Todas as mulheres gostam de flores.
– Gostar eu até gosto, mas minha casa tem mais flores que velório de gente famosa. Desse jeito não da, meu filho.
– Se não gosta, eu posso parar de mandar.

Com o ardil de um ninja tecnológico, Dírio envia um sms para Renatinha, sem que a namorada percebesse: “se vc ñ qr mais, eu paro de mandar =p”. A namorada pede um minuto, pois queria conferir a mensagem que recebeu. Assim que lê, ela exaspera-se:

– Meu Deus! Essa coisa de mensagem também me irrita! Você não sabe usar a boca? Só fala com os dedos!
– Achei que você gostasse, meu amor. Você sempre responde...
– Respondia por pura educação. Ok, admito: no começo é até “legalzinho”, mas, com o tempo, isso enche! Você nunca me telefonou! Só manda mensagem! Não acredito em homem que só mande mensagem!
– Mas... – Renatinha interrompe.
– Sem “mas”. Eu quero terminar nosso namoro. Está chato e sem graça. Quero ser livre, Dírio!
– Mas... – Dírio estava choramingando – Mas eu te amo! Não termine!
– Ai, Dírio! Você me quer bem?
– É lógico!
– Então vamos terminar. Só vou ficar bem se terminarmos.

E Renatinha era irredutível. Dírio tentou com todas as forças convencer a ex-namorada de que cometia um erro, mas não conseguiu. Com o coração partido, Dírio jurou nunca mais amar outra mulher. Jurou, também, que não mais teria qualquer contato com Renatinha, a mulher que estraçalhou o seu coração. Em verdade, Dírio cumpria a promessa, mas a cumpria apenas durante o dia e quando estava sóbrio. Quando a noite chegava, o rapaz era tomado pela sensação de abandono, de rejeição, pela sensação de “ninguém gosta de mim” e fraquejava. Tentando contrariar a ex-namorada, arriscava uma ligação. Dírio gastava cerca de quinze minutos apenas olhando o nome de Renatinha na lista telefônica, criando coragem para apertar a tecla de discagem. Quando encontrava coragem – sabe-se lá de onde – colocava o celular na orelha e, a cada “tuuuu”, torcia para que a ex-namorada não atendesse, afinal, o que diria? E Renatinha, malandra sem saber que era, não atendia as ligações. Assim que a chamada caia, Dírio era tomada por uma estranha dupla sensação: alívio por ter ligado e feito a parte que lhe cabia, mas ainda mais triste por ter lhe sido negado um mísero “alô”.

O comentário da pequena cidade era que Dírio passou a beber por causa da ex-namorada, o que não passava de uma mentira. O rapaz já era iniciado no álcool. Com o fim do namoro, Dírio apenas aumentou a quantidade de álcool semanal e perdeu a vergonha de embriagar-se em público. Passou a ser um bêbado imoral, ressentido, machucado; um bêbado que bebia sozinho na mesa. Completado dois meses de solteirice forçada, Dírio estava mais pálido, a barba sempre por fazer e um olhar distante, como se tentasse, através das sólidas paredes de concreto, encontrar Renatinha.

Num domingo qualquer, Dírio inicia a cruzada alcoólica depois do almoço – diga-se de passagem que o rapaz havia criado uma resistência ao álcool digna de dar inveja ao boêmio mais antigo. Como não podia ser diferente, foi beber sozinho, na mesa do canto, encostada na parede, de onde podia ser ignorado por todos e, ao mesmo tempo, podia ver a rua. Já de noite, um amigo de Dírio passava pelo bar e viu o coitado na sua solidão de bêbado e decidiu fazer companhia para o amigo e, quem sabe, dar uns conselhos para que o rapaz melhorasse. Sem pedir licença, Ulisses, o amigo, juntou-se à mesa de Dírio e interrogou-o:

– Rapaz, você está sumido! Como você está?
– Não existo mais paro o mundo – Dírio fez a confissão. – Não está vendo como estou? Estou acabado.
– Ora essa! Pare de drama, Dírio! O pessoal está sentindo a sua falta.
– Morri para o mundo.
– Estão preocupados com você, rapaz!
– Não deveriam. Minha razão de existir era Renatinha e ela me deixou. Não me resta mais nada.
– Essa moça mexeu com você!
– Mexeu comigo?! – Dírio explodiu – Eu amava, ou melhor: ainda amo Renatinha! E Ela me deixou assim, do nada.
– Te ver nessa autoflagelação é de partir o coração!
– Não me fale em coração partido, por favor.
– Vamos para alguma festa, Dírio. Garanto que você vai encontrar uma mulher bem ajeitada e passar bem essa noite – o amigo falava com um tom conselheiro, mas cafajeste.

A conversa foi se desenrolando por mais de duas horas e Dírio parecia ser irredutível. Ulisses já perdia as esperanças e imaginava o amigo vivendo naquela tristeza para sempre e além da morte. Mas, entre um copo de cerveja e outro, mesmo sem perceber, Ulisses deu um palpite que mexeu com Dírio:

– Você poderia usar todo esse amor para ter amor próprio!

Dírio parou e pensou, como se tivesse os olhos abertos para a verdade. Abrindo um largo sorriso, respondeu:

– Mas é evidente, Ulisses! Eu preciso usar esse amor é comigo mesmo e não com a safada da Renatinha!
Radiante por ter tirado o amigo da fossa, Ulisses concordou: – Seu amor é só para você mesmo! Você precisa gostar de você mesmo!
– Isso, exatamente: gostar de mim! A partir de agora, eu gosto é de mim! Eu gosto de mim, Ulisses! Eu gosto é de mim!

Na mesa houve uma comemoração sem par. Os dois amigos se abraçavam e brindavam o “eu gosto de mim”. A vibração era comovente e um garçom juntou-se para comemorar a nova vida de Dírio, uma vida de amor próprio. Assim que se acalmaram um pouco, Dírio confessou:

– Ulisses, não sei como eu não havia pensado nisso antes! – Dírio falava com o ar da verdade momentânea do bêbado.
– Você estava mais preocupado com a própria degeneração, rapaz!
– Tanto faz. O importante é que, de agora em diante, eu gosto é de mim! É Tão óbvio: o amor do homem foi feito para que ele ame a si mesmo!
– Mas e a mulher? – Ulisses perguntou, incerto da afirmação de Dírio, afirmação que ele mesmo fez nascer.
– Para a mulher não sobra nada. A mulher é um depósito de espermatozoides. Quando nossos desejos mais primitivos tomam conta, precisamos da mulher. Mas é só para isso! Amor mesmo é amor próprio!
– Complicado! – Ulisses coçava a cabeça.
– Eu quero te agradecer, Ulisses, por ter me salvado! – Dírio levantou e deu um beijo na testa do amigo, em sinal de eterna gratidão.

Antes que pudesse sentar, um “TOC TOC” ensurdeceu o bar. O “TOC TOC” reinava soberano e, nem Dírio, nem Ulisses, sabiam do que se tratava. O barulho foi ficando mais audível e ambos concluíram, sem falar nada, que era um caminhar. Parecia, até, o trote de uma égua adestrada. O “TOC TOC” era forte e intenso, com batidas cronometradas. Dírio sentou-se na cadeira de plástico e olhou para a porta para conferir do que se tratava. O “TOC TOC” cruzou a porta do bar e era ela. Renatinha estava com saltos que faziam seu caminhar emitir um “TOC TOC” poderoso e excitante. Renatinha provavelmente, pelo horário e pela direção, saia da igreja, mas suas roupas não eram de alguém que estava na igreja, pedindo perdão pelos pecados: eram roupas de uma pecadora confessa e nata. O vestido preto, justo ao corpo, desenhava uma silhueta perfeita, com curvas feitas sob encomenda; as pernas, visíveis dez dedos acima do joelho, eram torneadas de maneira feminina, sem músculos definidos, mas eram pernas firmes e livres de qualquer pêlo. O “TOC TOC” e o vestido que dava contorno preciso à silhueta mexeram com toda a certeza que havia dentro de Dírio, que disse para o amigo:

– Ulisses, eu gosto de mim é o caralho! Eu gosto é dela!

E Dírio saiu da mesa, ainda sem pagar a conta, em direção ao seu amor perdido e, quiçá, doentio.

2 comentários:

  1. kkkkkkkkkkkkkkk muito bom! tenho certeza de que existem muitos Dírios espelhados hahahahahah

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  2. Perfect. Muito bom parecido com os contos de grandes escritores brasileiros.

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