Fui à janela olhar o tempo e vi uma forte chuva cair. Os pingos
caiam na telha com harmonia e precisão dignas de uma orquestra. O vento gelado
que soprava fez-me tiritar e senti um arrepio que eriçou os pelos do corpo
todo. Experimentei certa melancolia por estar preso dentro de casa, sem
esperança de sair. Resolvi voltar para a sala e, quiçá, assistir um filme,
afinal, o clima pedia um filme. Abri a porta da sala e a vi deitada no colchão
que havíamos posto no chão. Ela estava deitada de lado, com uma diáfana coberta
que me permitia ver toda a sua silhueta. E como ela era sensual! A moça, então,
virou-se para mim, puxou a diáfana coberta – numa sugestão para que eu deitasse
– e disse: “volte para o colchão”. Assim que falou, deu um sorriso que me
corrompeu. Pedi a Deus para que chovesse por uma semana sem parar.
Um pequeno canto de leituras, com crônicas, contos, "contos de um parágrafo só" e artigos de opinião de um ainda jovem escritor. Nas crônicas retrato um episódio do meu cotidiano que chamou minha atenção; os contos refletem a vida, em sua face mais real, e, por vezes, trágica; talvez um novo gênero literário, os "contos de um parágrafo só" mostram a visão do amor, da paixão. Verba volant, scripta manent.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
domingo, 23 de setembro de 2012
A disputa eleitoral mirantense
Já nas primeiras linhas eu advirto que não tratarei
do mérito de cada candidato, mas, sim da corrida, da disputa eleitoral pelo
cargo máximo do poder executivo municipal. Os defeitos e qualidades, os acertos
e os erros, o que um candidato pode fazer ou não, deixo para que os próprios
digam. Alerto, ainda no primeiro parágrafo, que não sou partidário de nenhum dos
candidatos e não tenho por escopo enaltecer um ou depreciar outro candidato a
prefeito ou a vareador. Nas linhas a seguir tratarei apenas dos pontos em comum
entre a maioria dos candidatos.
A receita seguida para a propaganda e a visibilidade
dos candidatos é a mesma de sempre: jingles, adesivos, santinhos, visitas e
coisas do tipo. Não vejo problema no tipo de propaganda que praticamente todos
os candidatos – quando digo “candidatos”, refiro-me a candidato a prefeito,
vice-prefeito e a vereador – escolheram. Até acho que não escolheram tão mal,
afinal, essa receita sempre funcionou. Evidente que um pouco mais de
criatividade deixaria a disputa bem mais interessante. Se o candidato criasse
algo de diferente para divulgar a própria imagem e as ideias, não tenho dúvidas
de que ele seria mais comentado e, por conseguinte, teria mais visibilidade,
obtendo vantagem sobre os demais candidatos. Não é segredo que uma grande
visibilidade na campanha eleitoral gera o comentário de que o candidato “está
bem”, ou seja, que é muito popular e com grandes chances de vencer a disputa
eleitoral. E não há poder maior para angariar votos do que parecer estar à
frente na corrida eleitoral, mesmo que não esteja. Propaganda é tudo.
Os candidatos poderiam surpreender não só na
campanha, mas, também, nas propostas. Mesmo que não tenham intenção de fazer
algo por alguma coisa, ficar repetindo que “fará mais pela saúde e a educação”
evidencia uma enorme falta de criatividade e de propostas. Sinceramente, o que
me parece é que o candidato sequer sabe por que quer ser vereador ou prefeito,
e pensa: “aaaa, fala que eu vou fazer mais pela saúde e pela educação!”.
Ademais, fazer mais pela saúde e pela educação não é tão fácil quanto parece,
não basta ser eleito prefeito ou vereador para se fazer mais pela educação. De
início, a dificuldade maior está no pouco poder que o município possui. Apesar de
a Constituição Federal garantir certa soberania aos municípios, não é
suficiente para que um município pequeno e pobre como Mirante do Paranapanema
tome as próprias diretrizes acerca do que quer que seja. Além do mais, há uma
grande concentração de poder nas mãos do governo do estado e do governo Federal.
Estes dois têm poder para traçar o rumo de um município, e mais força ainda se
o município for de proporção mirantense. Ao contrário do que se espera de uma
Federação (a junção de vários estados, como, por exemplo, São Paulo, Rio de
Janeiro, Espírito Santo e os demais estados, forma a Federação) não vejo uma
regionalização do poder. Sendo assim, sem que o candidato tenha uma grande
influência com gente mais poderosa que ele, não posso acreditar que fará mais
pela saúde ou pela educação apenas por que o santinho dele promete.
Voltemos aos jingles. Sempre gostei dos jingles,
alguns são engraçados e realmente cumprem a razão de existir: grudar na cabeça
e fazer o eleitor lembrar-se do candidato e, principalmente, do número a ser
teclado na urna. Outros jingles, pelo contrário, são horríveis e anunciados
pela cidade inteira através de um som de péssima qualidade. Mesmo que o jingle seja
bom ou ruim, esteja num excelente ou num péssimo som, andar pelas ruas a 22
KM/H e o jingle num volume ensurdecedor não ajudará a atrair eleitores. Isso é
indiscutível. O som, na maior das alturas, atrapalha a paz de espírito,
atrapalha o sossego, atrapalha a concentração no trabalho, atrapalha a
concentração nos estudos, atrapalha a concentração de olhar para uma parede. E –
exceto aqueles que já eram adeptos do “sonzão de carro” – ninguém gosta,
ninguém acha engraçado, ninguém sente prazer quando um carro com um som num
volume irritante passa. Então, não coloquem os jingles numa altura para que
surdos ouçam. Se o jingle for bom e anunciado numa altura agradável, será
aceito com maior facilidade.
As carreatas estão sendo usadas mais do que nunca.
Não nego que elas sejam eficientes para dar visibilidade e uma impressão de que
fulano está na frente na corrida eleitoral. Porém, basear a campanha como se a
o voto devesse ser decidido a partir de quem tem uma maior carreata é ridículo.
Não digo por dizer, é só olhar o maior veículo de informação de nosso tempo: o
Facebook. Nos compartilhamentos há comparações de ambos os lados sobre qual
candidato é melhor porque a carreata ou o comício foi maior. Não creio que a
disputa eleitoral deva ser baseada na quantidade de pessoas numa carreata ou
num comício. Carretas com fogos: próximo parágrafo.
As carreatas com os fogos – em especial os fogos –
não seriam problema se não acontecessem também nos sábados e nos domingos no
período da manhã. Sem dúvida, os fogos de manhã irritam colossalmente. Não vejo
como os candidatos puderam imaginar que soltando fogos a partir das oito horas
da manhã de um sábado ou de um domingo poderiam angariar votos. Tomarei meu exemplo
para demonstrar o ridículo raciocínio estratégico: Segunda, terça, quarta,
quinta e sexta-feira meu dia começa às oito da manhã e só para de verdade às
onze horas da noite. Acordo cedo para trabalhar o dia inteiro e, durante a
noite, estudo em Presidente Prudente. Esta rotina não seria um problema se eu
não fosse um homem de insônias desesperadoras. Sem saber o motivo, diariamente
demoro um tempo enorme para começar a dormir e tenho que acordar cedo, o que me
priva de preciosas horas de sono durante toda a semana. Qual a melhor solução?
Dormir até mais tarde no sábado e no domingo, evidentemente. Porém,
infelizmente, os candidatos de ambas as partes não permitem que eu e milhares
de trabalhadores descansemos nos dois únicos ou, para quem trabalha no sábado,
no único dia da semana disponível para dormir até mais tarde, e verdade seja
dita: todos gostam de dormir até mais tarde. O que ninguém gosta – eu garanto –
é de ser acordado às oito horas da manhã do sábado e do domingo, porque, como
resultado, não será possível descansar para recomeçar a semana.
Mas, para a saúde do sono de milhares de trabalhadores, dia sete de outubro isso tudo acabará. Ou não.
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
Sábia decisão
Cinco, seis,
sete... Há quantos anos foi o nosso último “até logo”? Sinceramente, não me
lembro. Lembro-me, porém, que, depois desse último ‘até logo’, nunca mais te
vi, nunca mais cruzei o meu olhar com o seu, e não me importava. O que rolou
entre nós dois no passado ficou. Naquele dia, entretanto, por obra do acaso, eu
estava parado na rua, apenas olhando as pessoas passarem e te vi passar. Meu
coração, em verdade, bateu mais forte e mais intenso. Você estava linda e
maravilhosa, mas estava de mãos dadas com um talvez namorado. E como você
parecia feliz! Feliz de uma maneira que eu nunca havia visto. Senti uma pontada
de inveja e de ciúmes por nunca ter feito-a tão feliz. Continuei parado, apenas
olhando. Não me dei ao direito de meter-me na sua vida outra vez.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Amor próprio
Ainda que inconscientemente, Dírio era um apaixonado
sem critério. Toda a paixão que acometia o rapaz seria excelente se não fosse
uma paixão de cegar, dessas que deixam a pessoa boba, incapaz de raciocinar,
anulando o cérebro e colocando o coração no comando. Como não poderia ser
diferente, ao final da terceira ficada, pedia a pequena em namoro. Dírio era de
um romantismo ímpar, sem dúvida. Mas, infelizmente, o romantismo não o salvara
das ilusões e decepções.
Uma recente ex-namorada, a Renatinha, conseguiu mexer
com os parafusos de Dírio até demais. O namoro começou bem, o problema mesmo
foi o final. De início, o casal era apenas mimos. Dírio não se controlava e,
com uma pontualidade sacrossanta, enviava chocolates e flores para a namorada
todas as terças e sábados. Renatinha sentia-se especial, única, uma querida.
Com certa vaidade, numa terça ou num sábado, Renatinha chamava uma amiga à sua
casa para presenciar o infalível bouquet
com chocolates. Assim que o carro da floricultura encostou ela cutucou a amiga:
– Olha! Olha! Eu não disse que vinha?! Não falha!
A amiga, com uma pontada de inveja, retorquia: – Que
cosia mais chata um bouquet com
chocolates. Das duas, uma: ou ele quer te ver gorda, ou ele é gay. Essa coisa
de mandar flores só pode ser coisa de gay!
Como começaram a namorar depois da esmagadora onda das
mensagens sms, não eram diferentes de
outros casais e passavam o dia inteiro trocando sms com uma pertinácia incrível. Se num dia trocassem 100
mensagens, uma possível crise havia se instalado. Dírio já era doutor em enviar
sms: enviava jantando, estudando,
caminhando, pedalando. Diziam que ele podia enviar sms até dormindo – verdade ou não, não vem ao caso. Mas aconteceu o
inevitável: no fim do terceiro mês de namoro, Renatinha já nao comia todos os
chocolates, com medo de engordar, e as flores já não cabiam na sua casa, que
mais parecia um jardim florido. A mãe da garota precisava, não raras vezes,
queimar alguns bouquets por não haver
mais espaço na casa. E a curiosidade instalou-se na garota. Renatinha chamou o
namorado e, de imediato, perguntou-lhe:
– Dírio, que coisa é essa das flores?
Espantado, o rapaz pergunta, sem entender: – Como
assim “essa coisa das flores?”. Você não gosta de flores? Todas as mulheres
gostam de flores.
– Gostar eu até gosto, mas minha casa tem mais flores
que velório de gente famosa. Desse jeito não da, meu filho.
– Se não gosta, eu posso parar de mandar.
Com o ardil de um ninja tecnológico, Dírio envia um sms para Renatinha, sem que a namorada
percebesse: “se vc ñ qr mais, eu paro de mandar =p”. A namorada pede um minuto,
pois queria conferir a mensagem que recebeu. Assim que lê, ela exaspera-se:
– Meu Deus! Essa coisa de mensagem também me irrita!
Você não sabe usar a boca? Só fala com os dedos!
– Achei que você gostasse, meu amor. Você sempre
responde...
– Respondia por pura educação. Ok, admito: no começo
é até “legalzinho”, mas, com o tempo, isso enche! Você nunca me telefonou! Só
manda mensagem! Não acredito em homem que só mande mensagem!
– Mas... – Renatinha interrompe.
– Sem “mas”. Eu quero terminar nosso namoro. Está chato
e sem graça. Quero ser livre, Dírio!
– Mas... – Dírio estava choramingando – Mas eu te
amo! Não termine!
– Ai, Dírio! Você me quer bem?
– É lógico!
– Então vamos terminar. Só vou ficar bem se
terminarmos.
E Renatinha era irredutível. Dírio tentou com todas
as forças convencer a ex-namorada de que cometia um erro, mas não conseguiu.
Com o coração partido, Dírio jurou nunca mais amar outra mulher. Jurou, também,
que não mais teria qualquer contato com Renatinha, a mulher que estraçalhou o
seu coração. Em verdade, Dírio cumpria a promessa, mas a cumpria apenas durante
o dia e quando estava sóbrio. Quando a noite chegava, o rapaz era tomado pela
sensação de abandono, de rejeição, pela sensação de “ninguém gosta de mim” e
fraquejava. Tentando contrariar a ex-namorada, arriscava uma ligação. Dírio
gastava cerca de quinze minutos apenas olhando o nome de Renatinha na lista
telefônica, criando coragem para apertar a tecla de discagem. Quando encontrava
coragem – sabe-se lá de onde – colocava o celular na orelha e, a cada “tuuuu”,
torcia para que a ex-namorada não atendesse, afinal, o que diria? E Renatinha,
malandra sem saber que era, não atendia as ligações. Assim que a chamada caia,
Dírio era tomada por uma estranha dupla sensação: alívio por ter ligado e feito
a parte que lhe cabia, mas ainda mais triste por ter lhe sido negado um mísero “alô”.
O comentário da pequena cidade era que Dírio passou a
beber por causa da ex-namorada, o que não passava de uma mentira. O rapaz já
era iniciado no álcool. Com o fim do namoro, Dírio apenas aumentou a quantidade
de álcool semanal e perdeu a vergonha de embriagar-se em público. Passou a ser
um bêbado imoral, ressentido, machucado; um bêbado que bebia sozinho na mesa.
Completado dois meses de solteirice forçada, Dírio estava mais pálido, a barba
sempre por fazer e um olhar distante, como se tentasse, através das sólidas
paredes de concreto, encontrar Renatinha.
Num domingo qualquer, Dírio inicia a cruzada
alcoólica depois do almoço – diga-se de passagem que o rapaz havia criado uma
resistência ao álcool digna de dar inveja ao boêmio mais antigo. Como não podia
ser diferente, foi beber sozinho, na mesa do canto, encostada na parede, de
onde podia ser ignorado por todos e, ao mesmo tempo, podia ver a rua. Já de
noite, um amigo de Dírio passava pelo bar e viu o coitado na sua solidão de
bêbado e decidiu fazer companhia para o amigo e, quem sabe, dar uns conselhos
para que o rapaz melhorasse. Sem pedir licença, Ulisses, o amigo, juntou-se à
mesa de Dírio e interrogou-o:
– Rapaz, você está sumido! Como você está?
– Não existo mais paro o mundo – Dírio fez a
confissão. – Não está vendo como estou? Estou acabado.
– Ora essa! Pare de drama, Dírio! O pessoal está
sentindo a sua falta.
– Morri para o mundo.
– Estão preocupados com você, rapaz!
– Não deveriam. Minha razão de existir era Renatinha
e ela me deixou. Não me resta mais nada.
– Essa moça mexeu com você!
– Mexeu comigo?! – Dírio explodiu – Eu amava, ou
melhor: ainda amo Renatinha! E Ela me deixou assim, do nada.
– Te ver nessa autoflagelação é de partir o coração!
– Não me fale em coração partido, por favor.
– Vamos para alguma festa, Dírio. Garanto que você
vai encontrar uma mulher bem ajeitada e passar bem essa noite – o amigo falava
com um tom conselheiro, mas cafajeste.
A conversa foi se desenrolando por mais de duas horas
e Dírio parecia ser irredutível. Ulisses já perdia as esperanças e imaginava o amigo
vivendo naquela tristeza para sempre e além da morte. Mas, entre um copo de
cerveja e outro, mesmo sem perceber, Ulisses deu um palpite que mexeu com
Dírio:
– Você poderia usar todo esse amor para ter amor
próprio!
Dírio parou e pensou, como se tivesse os olhos
abertos para a verdade. Abrindo um largo sorriso, respondeu:
– Mas é evidente, Ulisses! Eu preciso usar esse amor é
comigo mesmo e não com a safada da Renatinha!
Radiante por ter tirado o amigo da fossa, Ulisses
concordou: – Seu amor é só para você mesmo! Você precisa gostar de você mesmo!
– Isso, exatamente: gostar de mim! A partir de agora,
eu gosto é de mim! Eu gosto de mim, Ulisses! Eu gosto é de mim!
Na mesa houve uma comemoração sem par. Os dois amigos
se abraçavam e brindavam o “eu gosto de mim”. A vibração era comovente e um
garçom juntou-se para comemorar a nova vida de Dírio, uma vida de amor próprio.
Assim que se acalmaram um pouco, Dírio confessou:
– Ulisses, não sei como eu não havia pensado nisso
antes! – Dírio falava com o ar da verdade momentânea do bêbado.
– Você estava mais preocupado com a própria
degeneração, rapaz!
– Tanto faz. O importante é que, de agora em diante,
eu gosto é de mim! É Tão óbvio: o amor do homem foi feito para que ele ame a si
mesmo!
– Mas e a mulher? – Ulisses perguntou, incerto da
afirmação de Dírio, afirmação que ele mesmo fez nascer.
– Para a mulher não sobra nada. A mulher é um
depósito de espermatozoides. Quando nossos desejos mais primitivos tomam conta,
precisamos da mulher. Mas é só para isso! Amor mesmo é amor próprio!
– Complicado! – Ulisses coçava a cabeça.
– Eu quero te agradecer, Ulisses, por ter me salvado!
– Dírio levantou e deu um beijo na testa do amigo, em sinal de eterna gratidão.
Antes que pudesse sentar, um “TOC TOC” ensurdeceu o
bar. O “TOC TOC” reinava soberano e, nem Dírio, nem Ulisses, sabiam do que se
tratava. O barulho foi ficando mais audível e ambos concluíram, sem falar nada,
que era um caminhar. Parecia, até, o trote de uma égua adestrada. O “TOC TOC”
era forte e intenso, com batidas cronometradas. Dírio sentou-se na cadeira de
plástico e olhou para a porta para conferir do que se tratava. O “TOC TOC”
cruzou a porta do bar e era ela. Renatinha estava com saltos que faziam seu
caminhar emitir um “TOC TOC” poderoso e excitante. Renatinha provavelmente,
pelo horário e pela direção, saia da igreja, mas suas roupas não eram de alguém
que estava na igreja, pedindo perdão pelos pecados: eram roupas de uma pecadora
confessa e nata. O vestido preto, justo ao corpo, desenhava uma silhueta
perfeita, com curvas feitas sob encomenda; as pernas, visíveis dez dedos acima
do joelho, eram torneadas de maneira feminina, sem músculos definidos, mas eram
pernas firmes e livres de qualquer pêlo. O “TOC TOC” e o vestido que dava
contorno preciso à silhueta mexeram com toda a certeza que havia dentro de
Dírio, que disse para o amigo:
– Ulisses, eu gosto de mim é o caralho! Eu gosto é
dela!
E Dírio saiu da mesa, ainda sem pagar a conta, em
direção ao seu amor perdido e, quiçá, doentio.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
Espetáculo inenarrável
Acordou
extasiado, nas nuvens, quase em outra dimensão. Manteve os olhos fechados por
alguns minutos, na tentativa de voltar ao sonho que tivera. Não conseguiu e
passou a relembrar do maravilhoso sonho. Era incrível a riqueza dos detalhes: –
No sonho, passou a noite com a mulher que desejava, que amava. Teve a noite de
amor mais verdadeira de sua vida e seria um pecado nefando chamar aquilo de
sexo: era amor e apenas amor –. O relógio marcava dez horas da manhã de um
sábado quando ele decidiu levantar e comer alguma coisa. Ao chegar à cozinha,
estacou e esbugalhou os olhos. A mulher do sonho estava ali, preparando o café,
apenas de calcinha e com uma de suas camisas sociais. A mulher era um
espetáculo inenarrável. Não foi sonho.
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Não desejo um mundo melhor
Sem cerimônia, confesso: eu não desejo um mundo
melhor. Não perderei o meu tempo desejando o impossível do impossível. Os
cretinos de plantão objetarão: “Nós devemos sempre desejar o impossível, o
improvável” e eles não estão totalmente equivocados. O problema é não saber que
essa manjada expressão, essa frase pronta, é uma metáfora, uma figura de
linguagem, que tem por escopo dar-nos ânimo e perseverança para buscarmos
aquilo que almejamos do fundo de coração, mas que é de difícil alcance, sendo
quase impossível a realização do desejo. “Sempre desejar o impossível” não tem
a ver com tentar cavar um buraco para chegar ao Japão utilizando uma pá.
Tentar construir um mundo melhor é, sem sombra de
dúvida, tentar, em posse apenas de uma pá, cavar um buraco até o Japão.
Qualquer projeto, qualquer objetivo, que dependa da participação e da dedicação
de mais alguém, além de você mesmo, tem uma grande chance de dar errado, total
ou parcialmente. Agora imagine algo que dependa da boa vontade de mais de 6
bilhões de pessoas, afinal, o mundo só pode ser um lugar melhor se todas as
pessoas que nele residem trabalharem para o bem. Aquele que acredita que tornará o mundo um
lugar melhor é demasiadamente leviano. Grandes mentes tiveram contribuições
inimagináveis para que as pessoas fossem um pouco melhor – seja de qual maneira
for: enriquecendo a cultura alheia, traçando diretrizes de vida ou sendo
exemplos – mas não conseguiram, e nem tentaram, que o mundo fosse melhor. Na
verdade, até onde sei, grandes eruditos, como Newton, Adam Smith, Aristóteles,
Einsten, Galileu Galilei, entre outros, passaram a maior parte de suas vias
preocupados apenas com o próprio mundo, tentando resolver as equações que a
vida lhes proporcionava, sem tentar que o mundo fosse melhor e, no entanto,
deram contribuições infinitamente mais importante para a humanidade do que
qualquer um que venda qualquer ideia para tornar o mundo um lugar melhor.
A única coisa que me parece viável, ante a nossa
insignificância numa perspectiva mundial, é uma mudança no próprio indivíduo
para que este – sendo muito otimista – torne o local que o rodeia melhor, e –
sendo mais otimista ainda – que contagie outras pessoas para que façam o mesmo.
Digo que é necessário ser muito otimista porque a mudança necessária para
fazer-se melhor, e possivelmente fazer nascer em outra pessoa a vontade de
também ser melhor, é cansativa, desgastante, por vezes frustrante, é traçada
num caminho amargo e cruel, faz com que seja necessário abrir mão de coisas que
são valiosas, não raras vezes exige que demos o braço a torcer, e acaba por
tornar o sujeito mais chato e evitável. E eu desconheço alguém que venda ideias
de um mundo melhor que tenha passado pelo caminho citado ou que realmente
estava mais preocupado com o próximo – ou os mais de 6 bilhões de próximos – a
ponto de lutar por um mundo melhor.
Inegável que há pessoas boas por natureza, que tentam
fazer algo pelo próximo, mas inegável também que há pessoas preocupadas apenas
com desejos egoísticos e mundanos e que, para a realização destes ignóbeis
desejos, acabam por tornar o “mundo” – entre aspas pois não me refiro ao mundo
em sentido global – um lugar pior e mais cruel. E tenham certeza de que más
ações, intencionais ou não, têm mais poder e afetação por maior tempo do que
boas ações. As más ações, de certa forma, são mais fáceis de serem atingidas:
para que uma ação bem intencionada se concretize é necessária uma dedicação
colossal em meio a um estado de coisas que a todo o momento conspira para que o
projeto não se realize. E, caso seja realizado, só perdurará se outras pessoas
estiverem dispostas a ter uma dedicação igual ou superior.
Mesmo com
tanta dificuldade, eu acredito que valha a pena passar por tanta dificuldade na
tentativa de transformar-se. A sensação de trabalho feito, de reconhecimento
verdadeiro, de missão cumprida, faz com que esqueçamos as dificuldades passadas
e apreciemos o gostinho da vitória com um prazer ímpar. E não importa de que
tamanho a vitória seja, pois ainda que nos pareça uma vitória colossal, haverá
pessoas dispostas a diminuir a conquista, menosprezando os méritos
conquistados. Ignorar esse tipo de deboche é necessário e um pouco difícil.
Para conseguir ignorá-los, é necessário sempre agir com sinceridade para poder
olhar no fundo da alma, avaliar as atitudes e as ações, e ter a certeza de que
o trabalho realizado foi, sim, de grande importância.
A derretida
A garota era a
fim do rapaz, mesmo que não confessasse. Era a fim, mas também era tímida. Na
presença do desejado, ficava muda, parada, transformava-se numa espécie de
estátua. Meio que empurrada pelas amigas, marcou um encontro com o garoto, que
devia ter quase a mesma idade. Já juntos, em menos de cinco minutos, ambos
estavam unidos pelo entrelace das línguas, num beijo juvenil e molhado. Sem
aviso prévio, o rapaz beija o pescoço da pequena. Ela tentou, mas sem sucesso,
evitar o beijo. Sentiu o eriçar dos pêlos, o frio que começou na barriga e foi
até a garganta, as pernas que tremeram e o chão que lhe faltou. Era uma
sensação nova e diferente, mas totalmente excitante e que a envolveu. A garota
derreteu-se.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
Me dê motivo
Um conto baseado na belíssima canção “Me dê motivo”,
do saudoso Tim Maia.
Natanael era um apaixonado confesso, desses que já
nascem amando. O rapaz, que contava cerca de 27 anos, amou loucamente suas duas
ou três namoradas anteriores. Para muitos, era tido como um leviano que não
media as consequências de amar tão intensamente. A Natanael nada disso
importava, pois só tinha olhos para sua nova e belíssima namorada: Jovelina.
Esta, menina sapiente, de família bem formada e sólida, à época era uma garota
de seus 21 anos. Inegável que o casal estava apaixonado e Natanael, numa
conversa com um primo, não fazia questão de esconder o fato:
– É isso mesmo que eu estou dizendo, Pacheco: amo
aquela pequena!
– Não estou dizendo o contrário, meu primo. Estou
dizendo que você deve ter mais cuidado ao amar. Devemos viver o amor, mas com
cautela.
– Ter cautela para amar? – Natanael retorquiu. – Não
tenha cautela no amor e faço questão de não ter! Pode parecer engraçado, mas eu
sinto – e fico pensando – que amo Jovelina e que ela também me ama!
– Pode até ser e eu não estou dizendo o contrário –
Pacheco advertiu. – Mas você precisa de mais! Precisa encontrar algo mais para
a sua vida!
– Discordo totalmente. Eu já encontrei tudo o que a
vida poderia me oferecer: Jovelina e o amor.
– Como você é ingênuo, meu primo! E o que pretende
fazer com “tudo isso”?
– Já tenho os meus planos. Chega uma hora que o homem
precisa sossegar e a minha hora chegou. A partir do amor que une Jovelina a
mim, eu construí os meus sonhos, construí castelos. Eu criei um mundo de
encanto onde tudo é belo! Tudo é belo, compreendeu?
– Olha, meu querido primo, invejo-te por ser tão
otimista e por ter tanto amor. Um calejado, como eu, já não tem muito amor no
peito. Mas já tive amor demasia para dar e vivi a experiência que você está
vivendo. O que posso lhe dizer – e que sirva como conselho – é que você vive
esse mundo de encantos por tempo determinado. Você vai viver seu mundo de
encantos onde tudo é belo até o dia em que a mulher que você ama vacilar e por
tudo a perder. Não há remédio: ela vai por tudo a perder! Não tenha dúvida!
Natanael, como dito no início, era um louco
apaixonado, mas conservava a virtude da cautela. Como se fossem tangíveis, o
rapaz apanhou as palavras do primo e guardou-as no bolso, para, quiçá,
refletir. Mas quem é que consegue
refletir sobre alguma coisa quando o ser amado está por perto? A verdade é que
Natanael era cego de paixão. O rapaz amava com todas as forças e com todo o
coração. Dizia ele que só poderia amar se fosse numa total entrega. Mesmo
inconscientemente, o que Natanael pensava era que, se usasse todo o amor de seu
coração de uma só vez, e fosse magoado, não teria problema, afinal, depois da
decepção, já não restaria amor para martiriza-lo. Se o rapaz estava certo ou
não, não nos interessa.
Jocelina, a bela e jovem Jovelina. Sua beleza era
algo intrigante: não usava maquiagens. Ou melhor: usava apenas um lápis no
olho, se muito. E, mesmo com a escassez de pintura, era dona de um rosto sem
igual, um rosto feito sob encomenda. A beleza de Jovelina, diziam alguns, era
algo em busca de definição, pois nenhuma palavra conhecida pela língua dos
homens poderia ser um adjetivo à altura. Incontestavelmente, Jovelina era bela
e não mais discutirei sua beleza. Era bela, mas ainda jovem demais para compreender
a profundidade do amor, a profundidade de um Natanael. Movida pela ingenuidade
juvenil, no que tange ao amor, disse para Natanael, no meio de um desses
encontros de namorado:
– Natanael, querido... – Jovelina disse melancólica,
talvez com vergonha ou medo do que diria.
– Pode falar, minha linda.
– Não vou dar rodeios: acho melhor terminarmos nosso
namoro.
Caindo das nuvens e sem saber o que fazer, Natanael
apenas perguntou: – Mas terminar? Porque terminar o namoro?
– Eu não sei direito, Natanael. Parece que já não há
mais nada entre nós. Acho melhor terminarmos.
– Não há nada entre nós? – Indignou-se – Eu te amo
como nunca, nós nos damos bem e você diz que não há nada entre nós?!
– Eu não sei
explicar, Natanael. Desculpe-me.
– Não posso desculpá-la. Eu quero um motivo. Vamos,
me dê motivo!
– Não há motivo. Só não quero mais namorar com você.
Acho melhor você ir.
– Me dê motivo para ir embora! – Natanael fala
olhando para o céu – Oh, Deus! Estou vendo a hora de perder minha namorada!
– Por favor, Natanael, não torne as coisas mais
difíceis para mim!
– Difíceis para você, Jovelina? Tu és a mulher que eu
amo e assim, do nada, diz que devemos terminar e que eu devo ir! Um motivo,
Jovelina, eu imploro-lhe apenas um único, escasso, u humilhante motivo. Mas me
dê motivo! – Natanael sente uma tremenda vontade de chorar, mas engole o
pranto.
– Não tenho motivos para dar-lhe.
– Acho que só resta-me ir embora. O que fazer? Eu
vou, mas não faz sentido... – Àquela altura, Natanael já não conseguia esconder
o choro e acabou rompendo-se num pranto quase infantil, mas um pranto
verdadeiro e comovente, um pranto que, ao invés de derramar lágrimas, derramava
pequenas partes do recém-partido coração. Até o mais frio dos homens choraria,
afinal, é nessa hora que o homem chora.
– Não chore, Natanael, não chore. Eu não queria
magoá-lo! – Em vão, Jocelina tentou consolar o inconsolável Natanael.
– A dor... – Entre prantos, Natanael disse – A dor é
forte demais para mim!
– Acredite: Para mim também é uma dor forte.
– Mentira sua, Jocelina. – Recompondo-se do choro,
ele pergunta: – É isso mesmo que você deseja? Deseja que terminemos o namoro?
Mas, antes que responda, eu advirto-a: caso a resposta seja que “sim”, não terá
mais volta.
– É isso mesmo que eu desejo, Natanael. Infelizmente,
é isso mesmo!
Natanael busca forças para dar a sentença de fim de
namoro. Mas uma sentença digna de um romântico. Como era um perfeccionista e
gostava de falar para que não houvesse dúvidas, por algum tempo ficou calado e
apenas pensando. De repente, toma fôlego e diz à ex-namorada:
– Não tenho como mudar sua opinião e não desejo ter
ao meu lado alguém que não me deseje. E, já que você quis assim, tudo bem, sem
problemas. Mas é cada um para o seu lado. Não vou ficar triste, pois a vida é
assim mesmo. Quer saber de uma coisa? Eu perdi meu tempo com você, Jocelina.
Perdi tempo amando alguém que não me amava.
– Eu te amei! – Jocelina interrompeu.
– Não fale, apenas escute. Você não me amou. O amor
não pode acabar de repente e sem um motivo digno. Mas, tudo bem, sem problema
algum. Como eu disse, é cada um para o seu lado. Entretanto, eu peço que não
mais me procure, pois eu vou atrás de alguém melhor que você e tenho a certeza
de que encontrarei!
– Natanael...
– Sinceramente, eu espero que seja feliz nesse seu
novo caminho, afinal, ficar contigo já não faz mais sentido. Vai ser melhor
assim.
Afogado numa tristeza inenarrável, Natanael meio que
sumiu da vida de Jocelina. O desejo do rapaz era, a todo custo, esquecer a
pequena que amara, matar as lembranças dos bons momentos que passaram juntos.
Contudo, Natanael sabia que as lembranças são imortais e não admitem serem
esquecidas. O máximo que o rapaz poderia fazer era escondê-las em algum lugar
da cabeça. Porém – sempre há um porém – elas ficariam algures esperando o
estímulo certo para tomarem vida novamente. Entre os conhecidos de Jocelina,
ninguém, há pelo menos três meses, havia visto ou tido notícias de Natanael.
Fato este que despertou na moça preocupação para com o ex-namorado. – “E se ele
tiver acabado com a própria vida?” – devaneava. A verdade é que Natanael,
apesar das feridas que a vida lhe causara, era um apaixonado pelo ato de viver
e jamais acabaria com a própria vida.
A pontada de preocupação de Jovelina – sabe-se lá por
que – pouco a pouco foi transformando-se em amor. Aquele amor, que ela jurava
ter acabado, queimava num fogo diáfano, ainda em brasas, quase sem força. Ao
sentir-se preocupada com o paradeiro do ex-namorado, Jovelina, sem saber,
nutriu a ínfima labareda que ardia discreta, escondida, esperando a fagulha
certa para voltar a queimar como se fosse um incêndio de amor. E, neste
incêndio, Jocelina queimou-se por inteira e se viu novamente apaixonada pelo
homem que outrora pediu que deixasse a sua vida. Desesperada de amor, teve a
certeza que o melhor a ser fazer era encontrar Natanael novamente e pedir-lhe
para voltar a namorar. E foi o que Jovelina fez.
Após algumas pesquisas, descobriu o paradeiro do
desiludido Natanael. Diga-se de passagem, Jovelina não era exceção e não sabia
como dar início à conversa. Trancada no próprio quarto, ensaiou incansavelmente
todo o discurso. Fazia gestos, caras e bocas. Precisa decorar o roteiro e
torcer para que Natanael o seguisse. Pois bem, três dias depois dos ensaios,
Jovelina tomou toda a coragem do mundo e, de cara lisa, foi parar de frente à
porta da casa do ex. Desejando a volta do relacionamento, mas com medo da
conversa, ela chama o rapaz. Assim que vê Jovelina parada na calçada, Natanael
não acredita na cena, mas, como um bom moço educado, foi atender e ouvir o que
a ex-namorada tinha a dizer. Sem hesitar, Jovelina dispara:
– Perder-te foi um erro enorme, Natanael! Volte para
mim, por favor! – Jovelina dizia quase suplicando o perdão de Natanael.
– Calma lá! – Natanael ponderou. – Você não pode,
depois de tudo que me fez, aparecer aqui e simplesmente pedir para voltar!
– Eu sei que errei, mas perdoe-me!
– Me dê motivo para perdoá-la, Jovelina. Me dê
motivo! Você fez um jogo sujo comigo.
– Eu me arrependo! Você ainda gosta de mim? –
Jocelina falava parecendo que fazia uma aposta.
– Não posso esconder: eu ainda gosto um pouco de ti.
Mas agora eu fujo para não sofrer! Escuta: eu fui mais que seu namorado, eu fui
seu amigo! Te dei o mundo!
– Eu sei e sinto falta de tudo isso!
– Você não soube dar valor. Você foi fundo e quis me
perder.
Em meio ao choro, Jocelina diz: – Eu te amo e sei que
é de verdade!
– É uma pena, pois agora é tarde e não tem mais
jeito! Para o seu defeito, para o seu erro, não há perdão! Por favor, saia
daqui. Eu vou à luta que é a vida curta. Não quero voltar a namorar com você.
Não vale a pena sofrer em vão!
– Eu sei que fiz errado, Natanael, mas quero uma
chance para fazer certo!
– Pode crer. Você pôs tudo a perder! Tínhamos um
mundo lindo pela frente e você pôs tudo a perder!
– Fui ingênua!
– Ingênua ou não, você não podia me fazer o que fez.
E, por mais que tente negar, terminou tudo sem motivo. Me dê motivo!
– Olhe no seu coração e encontre a melhor opção,
Natanael! Eu te amo!
– Tudo bem, vou olhar. Podes crer. Olhei e te digo:
eu vou sair por aí e mostrar que posso, sim, ser bem feliz. E de uma coisa eu
tenho certeza: vou encontrar alguém que saiba me dar motivo! Me dar motivo. Era
só o que você precisa ter me dado: motivo.
As Narcisas
Ostentava, em
todo e qualquer lugar – no celular, nas redes sociais ou no mural do próprio
quarto – dezenas de fotos da própria imagem. As poses eram das mais diversas:
apenas de rosto, de busto, de corpo inteiro, e qualquer pose que uma câmera
digital e a inspiração de namorada lésbica da própria imagem permitiam criar.
Se era bela pouco importava para nos agredir com um rajada das próprias fotos.
Sua imagem era seu troféu, seu bem mais caro, e ela fazia questão de exibi-la.
terça-feira, 4 de setembro de 2012
Traído, porém feliz
Dagmar e Euzébio eram casados há, pelo menos, uma
década. Dizia-se que o casal era do tipo “paradão”, sem nenhuma novidade, sem
crises, sem brigas que acordassem os vizinhos.
As fétidas vizinhas de esquina comentavam que talvez o casamento fosse
apenas uma faixada, que era algum tipo de negócio imoral ou coisa que o valha.
A verdade é que Dagmar e Euzébio não gostavam de experimentar novas
experiências, nem aventuras, e estavam consideravelmente felizes com a vida
monótona que levavam. O casal parecia ser regido pela burocracia estatal:
acordavam sempre no mesmo horário, tomavam café juntos, cada um ia para o seu
trabalho e no final da tarde se encontravam novamente. Já em casa, Euzébio
cuidava dos bichos e do quintal, enquanto Dagmar preparava o jantar. Não tinham
filhos e diziam-se felizes por ainda conservarem a falta de responsabilidade
paterna e materna. Numa manhã de sábado, Euzébio propõe uma inovação, uma
ousadia:
– Dagmar, sabe o que eu estava pensando?
– O que? – Responde Dagmar sem muita curiosidade ou
algum grande interesse.
– Cinema. Vamos ao cinema ver algum filme. Está
passando um bom de ação e pensei que seria uma boa irmos juntos. O que acha?
– Cinema? Sei não. Nós nunca saímos e você propõe um
cinema, como se fossemos namorados? Fez alguma coisa de errado, Euzébio?
– Ora essa! Não posso levar minha esposa para se
divertir sem que eu tenha feito algo de errado?
– Não, não pode. Os homens são assim: nunca querem
fazer nada e, quando querem, fizeram alguma coisa de errado. Eu li na revista,
Euzébio, eu li!
– Pois continue lendo sua revista que eu vou ao
cinema sozinho!
E, de fato, Euzébio foi sozinho ao cinema. Emburrado
com a suspeita pueril da esposa, decidiu tomar a decisão mais radical de sua
pacata vida: sair sem a companhia da esposa. E, como não poderia ser surpresa,
Euzébio não conseguiu assistir ao filme tranquilo. Na cadeira do cinema ele se
remexia, impaciente. No fundo, sabia que cometera um erro. Metódico que era,
fazia tudo sempre igual e pensava que qualquer alteração nos seus métodos –
alguns chamavam de manias – poderia causar uma desgraça, quiçá o fim do mundo;
era como se a alteração de suas manias perturbasse as leis e a ordem do
universo, assim: sem explicação.
De volta ao
lar, no exato momento em que cruza a porta, Dagmar o recebe com uma pergunta:
– Gostou do seu cineminha? – Dagmar dava ênfase
demasiada em “cineminha”.
– Um erro. E repito: um erro! – Euzébio confessou do
alto de sua estranheza de manias – Fui sozinho e agora tenho a certeza de que
uma desgraça vai acontecer.
– Eu te disse que era melhor ter ficado em casa. Eu
disse.
– Realmente, você disse. Eu que sou um burro e não
ouvi. Perdoe-me, minha esposa, perdoe-me!
Como foi dito no primeiro parágrafo, Dagmar e Euzébio
formavam um casal feliz, monótono, mas feliz, e a absolvição de Euzébio foi
sumária, célere, sumaríssima! Ali, na porta de entrada da casa, a absolvição
foi dada e consumada. Os dois apenas tiveram tempo para fechar a porta,
impedindo que os amaldiçoados olhares alheios corroessem o momento de luxúria
que estava para se consumar.
Numa manhã de terça-feira, Dagmar acorda mal: olhos
lacrimejando, garganta inflamada e dores de cabeça. Ao voltar do banheiro,
Euzébio vê o rosto sofrido da mulher e a aconselha a continuar na cama e não ir
trabalhar. Dagmar protesta dizendo que não poderia faltar no trabalho, mas
Euzébio a convence de que no final do dia a levará ao médico e conseguirão um atestado.
Dagmar acaba cedendo e continua a dormir até tarde. Lá pelas 14 e tantas Dagmar
sai da cama, sem fome por causa da infecção na garganta. Como passara o dia
inteiro deitada, decide ir tomar ar na calçada.
Tanto Dagmar quanto Euzébio eram demasiadamente
reservados, não se davam ao luxo de sequer ficar na calçada de bobeira. Em
posse de uma cadeira de área, Dagmar vai conferir a novidade que é a calçada.
Senta-se debaixo de uma árvore, para aproveitar a sombra, e fica observando os
transeuntes. A diversão dela era imaginar o que cada um estava fazendo e o que
realmente gostaria de fazer. Sem que Dagmar perceba, uma vizinha de cadeiras
largas e com significativo acumulo de gordura na região abdominal se aproxima e
investe para saciar a curiosidade:
– Não foi trabalhar hoje, Dagmar?
– Oh, desculpe-me, quem é você?
– Sou a Fulana, sua vizinha de muro.
– A sim. Desculpe-me. É que fico muito em casa em não
conheço a vizinhança.
– Eu já havia reparado isso – a vizinha confessa. –
Mas, então, não foi trabalhar hoje?
– Pois é! Acordei muito mal da garganta! Não estou
conseguindo nem comer, acredita?
– É virose. Nessa época do ano sempre dá virose.
– Pode ser, pode ser.
– E o seu marido? Ele foi trabalhar assim mesmo?
– Foi. Euzébio só quebra a rotina se morrer. Ele é
cheio de manias e as conserva até com algum deleite.
– A vida de casado de vocês é uma rotina? – A vizinha
pergunta na sua insensível curiosidade.
– É sim – Dagmar confessa numa inocência ímpar.
– Cuidado que casamento que cai na rotina acaba em
traição.
– Bobagem. Vivemos na rotina, mas vivemos felizes.
– Você que pensa que é bobagem. Sei muito sobre
casamentos e sei que você deve escolher se vai trair ou se vai ser traída. E,
quanto antes tomar a decisão, melhor.
– Eu não tenho coragem de trair meu Euzébio. Ele não
me dá motivos e eu trairia a troco de que?
– A troco de não ser traída, bobinha. Casamento é
isso: um equilibrismo de traições.
– Que visão mais pessimista. Pois fique sabendo que
eu não tenho nem um pingo de vontade de trair. Nunca tive e nunca terei!
– Pois eu te aviso: se colocar uma novidade na rotina
de vocês, ainda que seja a presença de um amante, o casamento melhora. E você
não será a traída. E que mal pode ter um amante? Desde que seu marido não saiba
de nada, um amante faz até bem. O amante é quem apimenta a relação. Ter um
amante faz você viver a eterna disputa no sexo: quem é melhor? O marido ou o
amante? Entendeste?
– Entendi perfeitamente. Entendi que a senhora é meio
pirada. Diga-me uma coisa: a senhora trai o seu marido?
– Eu sou viúva, minha filha, viúva!
Dagmar considerou um absurdo as ideias da viúva
vizinha gorda. Como um amante poderia deixar o casamento mais interessante? E a
ideia de uma competição de sexo fazia Dagmar sentir-se quase uma prostituta.
Mas, como se trata de coisas da vida, com o passar do tempo, a ideia da vizinha
criou raízes na cabeça de Dagmar. Não só criou raízes como também amadureceu. –
E há coisa mais difícil de ignorar do que uma ideia fixa? Creio que não. – Num
dia qualquer, já totalmente curada da enfermidade que ocasionou o encontro com
a viúva, Dagmar prepara a janta, mas a prepara sem dar muita atenção à comida.
Seus pensamentos eram mais críticos, mais observadores e mais excitantes. A
partir de então, considerou que a vida do casal era realmente uma chatice sem
fim, dessas de causar um tédio colossal.
Dagmar era funcionária pública municipal e trabalhava
numa seção administrativa da prefeitura. Ociosa numa tarde em que apenas
esperava o tempo passar, ela começou a reparar em Oswaldinho, um rapaz mais
jovem e de beleza considerável. A partir de então, a mente de Dagmar foi tomada
pela ideia maluca da vizinha. Deitar-se com Oswaldinho era o objetivo de
Dagmar. – “Quem sabe essa pulada de cerca não coloca mais fogo no meu
casamento?” – Pensava Dagmar, na tentativa de encontrar uma justificativa moral
para o adultério.
Em poucos dias e com uma astúcia admirável, Dagmar
arquiteta todo o seu plano e decide coloca-lo em prática. Como Oswaldinho era
um Guardinha – espécie de jovem que faz vários trabalhos administrativos mais
chatos ganhando menos do que um empregado de verdade ganharia – ela pede ao
garoto que leve alguns processos administrativos para tirar cópias na
copiadora, mas na copiadora da sala de Dagmar. Sem nada estranhar, Oswaldinho
obedece às ordens e parte para a tarefa. Dagmar preferiu que o garoto entrasse quando
a sala estivesse sozinha. Assim, poderia surpreendê-lo. E foi o que fez. Sem
imaginar qualquer mal, Oswaldinho adentra a sala de Dagmar e começa a tirar as
cópias. Cerca de quatro minutos depois, Dagmar entra na sala, mas entra
sorrateira. Sem que Oswaldinho percebesse, ela segura na cintura do rapaz e
diz:
– Sabe que eu sempre te achei o mais gatinho de todos
os guardinhas dessa prefeitura?
– Que isso, Dona Dagmar? – Oswaldinho responde
acanhado.
– Não fique tímido. Sei que você me olha. Ou pensa
que eu nunca te peguei olhando para minha bunda quando passo por você?
– Perdão, Dona Dagmar! Perdão! Eu não fiz por mal. Às
vezes faço isso sem querer. Desculpe-me!
– Não seja bobo, rapaz! E pare de me chamar de “Dona”
Dagmar. É para me chamar apenas de Dagmar, entendido?
– Sim, Dona Dagmar. Desculpe-me! Sim, Dagmar!
– Então, como eu disse, já vi você olhando para a
minha bunda. Não é verdade? Você não fica olhando?
– Não... – Oswaldinho responde com a timidez de quem
mente, mas não quer mentir.
– Mentiroso. Se você confessar, eu não conto nada ao
secretário. Vamos, confesse: você ficava olhando para a minha bunda?
– Sim, eu ficava olhando quando a senhora passava.
Dagmar, você é uma mulher atraente, é normal que eu olhe.
– E porque você olhava? Queria pegar nela? – Dagmar
pergunta, de maneira sensual, apontando para as próprias nádegas.
Já delirante e possuído pelo desejo, Oswaldinho diz:
– Queria, Dagmar, queria muito apertar.
– Pois vamos, aperte minha bunda. Vamos.
– Dagmar, e se alguém ver?
– Ninguém está vendo. Vamos, mostre que tem coragem!
Oswaldinho faz a investida, mas Dagmar desvia do
rapaz e diz:
– Queria saber se tinha realmente coragem e agora já
sei. Se quiser continuar, apareça em casa amanhã, no horário do expediente.
– Mas como vou estar lá no horário do expediente?
– Isso já é um problema seu. Se quiser continuar,
esteja lá, mais precisamente, às 15 horas.
– Mas e o seu marido? Você não é casada?
– Sou, sim. Mas meu marido não vai estar em casa, te
garanto. Se quiser, apareça. Tchau, tchau!
No dia seguinte, Dagmar foi trabalhar no período da
manhã e sempre que cruzava o olhar com Oswaldinho, punha o rapaz em chamas
instantâneas. Antes de sair para o almoço, Dagmar passa na seção de controle do
Ponto para avisar que não voltaria no período da tarde e que a ausência deveria
descontada depois, de suas férias. Já Oswaldinho, sempre temeroso em levar
bronca ou perder o emprego que lhe garantia a compra de futilidades juvenis,
preferiu esperar que fosse incumbido de algum trabalho na rua para poder
demorar e ir até Dagmar matar seu incontrolável desejo pela luxúria, matar o
desejo pela mulher alheia, pela mulher casada.
Pontualmente às 15 horas, Oswaldinho liga para o
celular de Dagmar, avisando-a de que estava no portão, esperando para entrar.
De imediato, Dagmar abre um pouco a porta da frente, dando o sinal para que o
garoto entre. Assim que cruza a porta, Oswaldinho quase cai das próprias
pernas: Dagmar estava numa lingerie infernal, daquelas que tirariam do sério
até o monge mais concentrado. Oswaldinho não tem dúvidas e investe um beijo
desesperado, mas é barrado por Dagmar, que o arrasta para o quarto.
Dentro daquelas quatro paredes houve de quase um
tudo. Foram cerca de duas horas de dedicação à luxúria. No final do encontro,
Oswaldinho está colocando a roupa maravilhado, encantado com a overdose sexual
que experimentara. Estava tão maravilhado, e quase em transe, que se esquecera
completamente de voltar para a prefeitura no fim do expediente. Mas naquele
momento nada importava. Exausto e com a sinceridade inerente ao bobo
apaixonado, Oswaldinho confessa:
– Eu sempre fui louco por você Dagamar!
– Bom saber disso. – Responde Dagmar.
– Você só diz isso? “Bom saber disso”?
– Queria que eu dissesse mais o que, garoto?
– Bom, tanto faz. Amanhã nos encontramos de novo?
– Não sei. Vou pensar no seu caso.
E Dagmar realmente pensou no caso. No dia seguinte,
no trabalho, Oswaldinho quis falar com Dagmar:
– Dagmar, eu queria... – Dagmar interrompe.
– Dona Dagmar!
– Mas a senhora disse que era apenas “Dagmar” para
mim.
– Pois mudei de ideia!
– Que confusão! Mas nós nos encontraremos hoje de
novo?
– Nem hoje, nem nunca mais!
– Mas... – E Oswaldinho ficou com a cara no chão.
A verdade é que Dagmar usou o garoto como um rato de
laboratório para saber se a traição realmente inovaria seu casamento, mas nada
aconteceu. Enquanto caminhava para chegar ao lar, Dagmar pensa se contaria ou
não para Euzébio o que havia acontecido. Assim que chega ao portão de casa, ela
tem a conclusão: não contaria nada e nunca mais trairia. Guardaria tudo para si
e ninguém nunca saberia do acontecido. Ao chegar à sala da casa, vê Euzébio lendo
o jornal. Dagmar pula no colo do marido e mete-lhe um molhado beijo na boca.
Euzébio, assustado, com a ação da esposa, pergunta:
– Que isso? Assim, do nada?
– Agora eu sei que te amo de verdade, meu amor!
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