quinta-feira, 26 de julho de 2012

O amor e suas soluções


Noberto constitui uma carreira sólida como advogado. Numa cidade de porte médio, era o mais renomado jurista que havia. Formou-se numa das tradicionais faculdades de Direito do Brasil, onde dedicou cinco anos e meio aos estudos. Estudou no tempo em que tornar-se bacharel em Direito era sinônimo de adquirir a carteira da OAB.

Sem dúvida, era um advogado experiente. Gostava de dizer aos estudantes mais novos:

– Eu mesmo já vi de tudo no mundo jurídico. Depois de algumas décadas de advocacia posso afirmar que nada mais me espanta!

E Noberto não dizia por simples vaidade, para contar vantagem, o advogado já havia presenciado de um tudo em sua grande carreira. Para provar sua experiência e que não poderia ser surpreendido, contava alguns casos que atuou, como o processo que um rapaz de 26 anos propôs contra pai e mãe, alegando que era de direito que seus pais deixassem a casa; ou um dos casos que mais o espantou – à época Noberto contava apenas 5 anos de prática –: certa vez, um homem volta do trabalho e flagra a esposa com o amante, na cama do casal, sobre os lençóis que ele havia comprado. Sem pesar duas vezes, o homem, um nordestino à moda antiga, saca um punhal e apunhala os traidores mais de 25 vezes. Até aqui o caso não espanta muito. O assombro maior foi o nordestino tentar, por mais de 2 meses, convencer Noberto de que era inocente, afinal, cometera o crime em legítima defesa da honra.  O assassino foi condenado, por óbvio, mas Noberto trabalhou duro no caso, como era de costume.

Era apenas mais um dia de rotina no escritório, até a secretária telefonar para Noberto:

– Doutor, um cliente está aqui e disse que quer uma consulta com o Sr.
– Acácia, já lhe avisei “n” vezes que consulta só agendada! – respondeu Noberto.
– Eu avisei a ele, Doutor! – retrucou Acácia – Mas ele está insistindo há cerca de 15 minutos e disse: “Diga ao Doutor que dinheiro há! Dinheiro há!”.
Tentado pela curiosidade de saber quanto dinheiro havia, Noberto acabando cedendo: – Ok, ok. Mande-o entrar que eu vou recebê-lo. E que isto não aconteça mais, Acácia. Consulta é apenas com agendamento, agendamento!

Noberto desliga o telefone e, depois de 3 minutos, entra Tício. Este aparentava não dormir por mais de 3 horas por noite. Olheiras fundas, quase negras, a barba rala, um olhar de cachorro submisso. Noberto levanta, aperta a mão de Tício e pede para que ele sente. Já em sua cadeira, Noberto começa:

– Bom Dia! Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Noberto e atuo em todas as áreas do Direito. Qual seu nome e como poderei ajudá-lo?
– Bom dia, Doutor. Meu nome é Tício e estou com um problema: preciso me divorciar de minha mulher – confessou.
– Eu vou precisar de uma série de documentos e, mais importante: vou precisar saber dos detalhes do motivo que o levaram a decisão de divorciar-se – disse Noberto, com aquela entonação de advogado experiente.
– Caso complicado, Doutor, caso complicado! – suspirou Tício.
– Não se preocupe, senhor, depois de muito advogar, nada mais me impressiona nesse mundo.
– Meu caso é até comum, acredito – dizia Tício olhando sempre para baixo, como se sentisse vergonha.
– Pois me conte o que aconteceu para que eu possa encontrar a melhor solução.
– É o seguinte, Doutor, – começou Tício, desta vez com coragem para olhar o advogado nos olhos – eu era, ou melhor, ou pior, não sei, ainda sou casado com uma mulher que sempre amei, e ainda amo, confesso. Sempre fiz de tudo para que o casamento fosse um paraíso. Nada faltava àquela mulher, nada! Tínhamos sempre contato e eu era um marido presente. Viajávamos com frequência e os destinos eram o que de melhor o dinheiro poderia comprar! Fomos casados por mais de oito anos, o que, nos tempos de hoje, é uma eternidade. Mas, infelizmente, descobri que minha esposa é infiel – confessou Tício meio taciturno, melancólico e suspirando.
– Como ela manteve um amante, será mais fácil para nós. E, hoje, a lei de divórcio é uma baba! – gabou-se o advogado. – Por quanto tempo ela manteve uma relação extraconjugal?
– Ela me disse que há dois anos vive comigo mantendo um amante. – Com os olhos já marejados, Tício passa a filosofar: – Um amante, Doutor! Um sujeito que, quando não estou presente, é dono de minha esposa! Um alguém que se deita com ela como se fosse eu, o marido! Por dois longos anos eu mantive uma relação a três, mesmo sem saber. Sinto vontade de chorar quando penso que já beijei minha esposa depois dela ter se encontrado com o amante; sinto nojo de mim mesmo.
– Acalme-se, Tício – aconselhou Noberto para evitar que seu escritório de advocacia se transformasse numa mistura de consultório de psicologia com confessionário religioso. – Vou fazer meu melhor para que você não saia ainda mais prejudicado! – Noberto ficara sensibilizado com a história do sujeito, que aparentava ter seus 38 anos.
– Tudo bem, Doutor, desculpe-me. Fico mais triste ainda por amar aquela mulher. Meu desejo real era que pudéssemos continuar como um casal, mas a figura do amante.... Bom, eu procurei o senhor por saber que é o melhor advogado de nossa cidade. Eu quero me separar da minha mulher e ficar com os bens que adquiri sozinho, mesmo na constância do casamento.
– Olha, – disse Noberto, cauteloso – preciso que você me traga uma cópia da sua certidão de casamento para que eu estude o seu regime de bens. Dependendo do regime, vai ser difícil. Porém, tenha a certeza de que farei o meu melhor!
– Sem problema, Doutor – afirmou Tício, com uma certa esperança – Ainda essa semana trago os documentos para o senhor.
– Quanto antes, melhor! – garantiu Noberto.
– Doutor – questionou Tício – seria errado eu ainda buscar uma solução para continuar casado com minha esposa? O senhor sabe... Ainda amo ela.
Noberto julga a pergunta um tanto estranha, mas, como acreditava na conciliação e no amor, respondeu: – Claro que não. Devemos tentar perdoar e buscar o amor. Desde que isto não nos prejudique, é claro.
– Certo, Doutor! Obrigado por aceitar meu caso e pelos conselhos. Como adiantamento, deixarei, desde já, dois mil reais. Até mais. Tchau, tchau! – Despediu-se apertando a mão do advogado.

Dois dias após a consulta, a secretária de Noberto entra na sala e entrega-lhe um pacote: era a documentação de Tício. Noberto fica satisfeito com a eficiência de seu novo cliente e começa a analisar toda a papelada. Consulta a manual daqui, pesquisas jurisprudenciais acolá. O caso era difícil porque o regime de bens de Tício não permitia que ele ficasse com a totalidade dos bens adquiridos na constância do casamento. O amor é um mau administrador, pensou Noberto. Mesmo com a dificuldade do caso, o advogado não parou de pesquisar, na esperança de encontrar uma brecha legislativa que poderia ser utilizada. Dormia mais tarde do que de costume pensando em soluções. Até que um dia encontra algo que poderia ser útil e manda a secretária chamar o cliente. No dia seguinte, Tício aparece no escritório e cumprimenta o advogado:

– Bom dia, Doutor! Sua secretária me telefonou dizendo que o senhor tinha novidades acerca de meu caso.
– Sim, tenho – disse Noberto. Porém, antes de dizer a novidade, achou melhor perguntar a Tício como ia sua tentativa de reconciliação: – Mas, me diga primeiro, tentou reconciliar-se com sua esposa?
– Sim, Doutor, tentei. – respondeu Tício com certa tristeza – Mas não conseguimos chegar a um acordo. Ela diz que já não me ama mais e que seu amor é todo do amante. Acho que não há o que se fazer.
– Lamento, Tício. Mas tenho boas notícias: Apesar de seu regime de casamento ser rígido quanto aos bens adquiridos na constância do casamento, eu acredito ter encontrado uma brecha que nos dará sucesso absoluto na sua causa. Semana que vem consigo dar entrada no seu processo!
– Excelente, Doutor! Afinal, adquiri todos os bens sozinho. Seria injusto que ela ficasse com meu coração e meus bens – brincou Tício.
Noberto achou graça da brincadeira do cliente e despediu-se: – Assim que eu tiver outra novidade ou der entrada no seu processo, te comunico de imediato, ok? Até mais!

O brilhante advogado continuou a trabalhar na possível solução por mais dois dias. Queria, a todo custo, eliminar qualquer possibilidade de argumentação da parte contrária. Mais algumas noites tentando fechar as brechas de sua argumentação se passaram e a petição inicial parecia estar pronta. Noberto leu e releu a peça inúmeras vezes, afinal, era um perfeccionista e não admitia erro em seu trabalho. Conta-se que se formou seis meses depois de sua turma por não ter conseguido terminar seu TCC, pois passava noites em claro corrigindo o trabalho até ficar perfeito. Como julgara não estar completa sua obra acadêmica, decidiu esperar um pouco mais para concluir algo que beirava à perfeição.

Numa manhã de quinta-feira, Noberto termina a petição inicial do cliente e telefona para Acácia, com a intenção de mandá-la ao fórum para protocolizar a inicial. Contudo, Acácia o adverte:
– Doutor, seu cliente Tício está aqui e quer falar com o senhor. Mando ele entrar?
Meio que sem entender o motivo da visita do cliente, responde: – Perfeitamente. Mande-o entrar.
Tício entra na sala com outros ares. Estava mais corado, mais vivo, radiante. Cumprimenta o advogado com euforia:
– Bom dia, Doutor, bom dia!
– Bom dia, Tício! Tenha a bondade de sentar-se. – responde Noberto, que estava confuso. – Aceita um café?
– Aceito sim, Doutor! – retrucou Tício. – Doutor, tenho uma novidade para meu caso! – contou em euforia.
– Pois bem, quero ouvi-la!
– É o seguinte: Encontrei uma solução para manter meu casamento e não me divorciar de minha esposa!
– Isso é maravilhoso, Tício! E qual é a solução? – Perguntou o advogado, sem entender muita coisa.
– Doutor, como eu havia lhe dito, minha esposa disse que não mais me amava, que amava o amante e queria ficar junto dele. Lembra-se?
– Perfeitamente, Tício.
– Pois, bem. Não vou mais precisar do divórcio, mas o senhor pode ficar com a parte que lhe adiantei como gratificação por ter se dedicado e me aconselhado. Quero desistir da ação.
– Não há embrulho, amigo. Eu ainda não protocolizei a inicial. Agradeço pela bondade de deixar a parte como adiantamento. Mas me diga a solução que encontraste. – Insistiu Noberto já curioso.
– Vou lhe contar. Não sei como não pensei nisso antes! Era óbvio, só encaixar as peças: Eu ainda amo minha mulher, mas ela não me ama e quer ficar com o amante. Eu não quero me afastar dela, Doutor, então disse para minha mulher levar o amante para morar conosco e ela aceitou!
Tício percebe que o olho do advogado salta como num sinal de espanto e já emenda: – Assim todos saem ganhando: Minha esposa pode ficar junto do amante e eu posso ficar junto de minha esposa! Só disse à patroa que, no dia em que tiver relações com o amante, não deve me beijar. Ela aceitou tudo numa boa!

Noberto sente o espanto da situação. Um amante vivendo em harmonia com o marido; e dentro da mesma casa? Era demais para o advogado, mesmo ele que já havia visto de tudo e não mais se espantava, ficou possesso. Num gesto animalesco, Noberto abre a gaveta e apanha os dois mil reais que havia ganhado de adiantamento. Amassa as cédulas e atira na cara de Tício enquanto brada:

– Vadio! Canalha! Covarde! Saia do meu escritório agora, seu moleque! 

terça-feira, 24 de julho de 2012

Sem explicação


O casal há muito tempo ultrapassara a tênue linha que separa uma grande convivência da monotonia, do tédio absoluto. Só não eram estranhos na hora das refeições, oportunidade que une os maiores desafetos e porque não um casal em tédio? Gonzaga, o marido, era um faminto por vocação hereditária e seu maior deleite era comer, e comia ainda mais por ter recebido a dádiva de nosso tempo: comer sem engordar. Eulália, a esposa, uma mulher que os traços do rosto revelavam uma beleza há muito esquecida, era uma Amélia melhorada. Seu prazer era cuidar da casa e manter o lar em ordem, impecável, um paraíso de limpeza.

O almoço não era tão bem aproveitado, afinal, o casal também fora suprimido do deleito do almoço, que resumia-se a comer rápido e voltar para o trabalho. A janta, pelo contrário, era um espetáculo. Quem assistia àquela janta não era capaz de dizer que o casal mal se falava durante o restante do dia. Eulália fazia questão de vestir-se com pompa e usar a melhor louça para servir o marido. Gonzaga, por sua vez, tomava um belo banho e vestia-se com rigor, como se fosse receber o presidente americano para compartilhar a janta. Havia uma espécie de protocolo a ser cumprido e o casal primava pelo rigor. Prato de abertura, principal, acompanhamento, sobremesa.

Finda a janta, retiravam-se para o quarto e não se falavam. Dormiam na mesma cama, costas com costas, e sequer trocavam carícias, a intimidade do casal havia deixado o lar. Pela manhã, o despertador de Gonzaga acordava o casal. O marido tomava banho, vestia-se, tomava café e seguia para o trabalho. A esposa acordava, banhava-se, vestia-se, fazia o café para o marido e partia para limpar a impecável casa. Ambos despediam-se sem um mísero, um pequeno, adeus. Já não se importavam se, ao despertar, nunca mais se veriam outra vez. Sentiriam saudades, talvez, na hora do jantar.

Num dia qualquer, Eulália resolve varrer a calçada da frente. Varre com obstinada persistência. Não para até julgar não haver mais sujeira. Em meio às varridas, topa com uma Dona que não conhecia e, de imediato, pede desculpas:

– Me desculpe, não te vi. Estava muito concentrada em varrer.
– Não têm problema – respondeu Roberta – Mas porque tanta concentração em varrer?
– Sinceramente, não sei. Minha vida se resume a limpar. Meu fardo é ser dona de casa e estou conformada. – Redarguiu Eulália.
– Deveria repensar seu conformismo – Retrucou Roberta, que se despediu e entrou na casa ao lado.

Eulália jamais havia percebido a existência da vizinha e não deu muita bola para o que Roberta lhe disse e continuou seu martírio diário. Calçada limpa, foi para cozinha preparar o jantar do dia. Jantar preparado, esperava o marido voltar do trabalho. Gonzaga chega e parte para o banho, pensando no jantar e com uma ideia fixa que o assolou do trabalho até o lar. Superado o protocolo para sentar-se à mesa, Gonzaga mastiga enquanto tentava encontrar as palavras corretas e percebeu que tanto tempo sem diálogo matrimonial haviam lhe tirado palavras que não diziam respeito ao jantar. Pensou mais um pouco e disse à esposa, que estava sentada à sua frente:

– O negócio mesmo é nos separarmos, cada um para um lado e vida nova. O que nos une é apenas esse jantar que eu já nem gosto tanto assim. Então, topa a separação? Vai ser mais fácil por não termos casado no papel. É só cada um partir pra um lugar diferente.
– Não sei se funciona mesmo – ponderou Eulália – Será que conseguimos viver sem essa rotina miserável? Dê-me um tempo para pensar e te dou uma resposta definitiva. Pode ser?
– Um mês e nada mais que isso! – Gonzaga sentenciou.

Realmente Eulália tinha medo de sair da sua rotinha miserável, como gostava de chamar. Pensava que poderia enlouquecer, afinal, seria como um bicho silvestre retirado de seu habitat natural. Ficava mais tempo pensando e refletindo sobre a decisão a ser tomada do que limpando a casa. A sujeira já não era de tão importante. No final de uma tarde de quarta-feira, limpava a calçada quando Roberta aparece novamente e pergunta-lhe:

– Que há? Você nunca percebeu minha existência, mas eu sempre te observei. Percebo que anda pensativa.
Sem perceber, Eulália dá confiança à vizinha estranha e faz a confissão – Sabe o que é? Meu marido quer a separação e eu não sei se é bom negócio. Nosso casamento é uma faixada, nem no papel casamos! Já não temos mais alegria de estarmos juntos e sequer trocamos carícias. Mas, mesmo assim, não sei se é um bom negócio a separação.
– Boba! – Disse Roberta com um ar de superioridade – Você não precisa de uma separação. Você precisa acender o fogo que deixou apagar.
– Não entendo – respondeu Eulália – aonde quer chegar?
– Escuta – respondeu Roberta –, meu casamento também não tinha mais a menor graça. Eu e meu marido também já não trocávamos carícias e sequer havia sexo.
– Já nem sei mais o que é sexo – confessou Eulália taciturnamente, como se buscasse, sem sucesso, a última intimidade com Gonzaga.
– E a solução está justamente no sexo, amiga! – Aconselhou Roberta – Mas não sexo com seu marido. Para salvar seu casamento você precisa encontrar um amante!
– Com o olho saltado e sem entender nada, Eulália fez a pergunta – Mas como isso pode salvar meu casamento? Um amante, via de regra, acaba com o casamento.
– Você não entende nada mesmo! – Gabou-se Roberta – Olha, foi o que eu fiz e deu certo. Aconselhei outras amigas com o mesmo problema e foi certeiro. Foi te explicar como funciona: Seu casamento está por acabar por não haver sexo. Você já não sente atração pelo Gonzaga e nem ele por você. A jogada é simples, minha filha: Se arrumar um amante, você terá sexo, sem dúvida. Você vai andar pela sua casa sexualmente ativa novamente, isso vai despertar em você a vontade de desejar seu marido de novo. E o golpe principal é que homem nenhum resiste à mulher que está com desejos sexuais. Não têm erro. Faz o que eu te disse e depois me conta! Tchau!

A ideia corrompeu a mente de Eulália por cerca de duas semanas e, com o prazo para dar a decisão ao marido terminando, ela não sabia o que fazer. Dois dias antes do prazo fatal, Eulália preparou o inabalável jantar com a mesma eficiência, quiçá uma eficiência maior desta vez. Findo outro jantar, Gonzaga foi sentar-se em sua poltrona para assistir TV. Distraído com o noticiário, não percebeu que Eulália entrava na sala. A esposa saltou no colo do marido e, sem hesitar, meteu-lhe um beijo na boca como se aquele fosse o primeiro encontro do casal. O beijo foi intenso, molhado, apaixonado e quente. Gonzaga tentou resistir, mas, enquanto começava a desabotoar a camiseta, desistia da resistência. Depois daquela noite, o casamento foi salvo.

Coisas da vida...


terça-feira, 17 de julho de 2012

Bandolins


Partimos em dezembro de 2002 ou 2003, não me lembro ao certo. O destino da viagem consigo recordar: Venda Nova do Imigrante, Espírito Santo, cidadezinha perto da capital Vitória. A viagem era a primeira em família que eu tenho memória, pois a tenra idade não me permite ter acesso às lembranças das viagens anteriores. Pois bem. Eufórico, ajudo a fazer as malas e pego tudo que julgo ser necessário. Provavelmente todos estavam contentes com a viagem, afinal, eu nunca havia visto tanta mala e me perguntava se um Fiesta 2001 seria capaz de carregar tanta mala e mais 5 pessoas. Após 5 minutos, minha pergunta é respondida: Ele não podia carregar tanta coisa e precisamos reorganizar as malas: Pega uma mala menor daqui, deixa roupa lá, aperta acolá. Pai na direção, mãe ao seu lado, e os três filhos no banco de trás. Finalmente malas e pessoas conseguem entrar no Fiestinha e estão prontos para rumar para o litoral capixaba.

Não nego a euforia que me dominava. Estava decidido a ficar acordado a viagem toda e ser uma espécie de navegador, ajudando a guiar a família por uma estrada que eu não conhecia. Com a persistência de uma criança, durmo na primeira oportunidade que tenho. Encostei-me na janela da porta traseira direita e dormi igual uma pedra, deixando de absorver memórias e de respirar novos ares. As poucas memórias da estrada se resumem em paradas para abastecer o carro e para comer. Catorze horas depois, subimos a serra e chegamos ao destino. Aquele lugar era encantador, parecia uma cidade que decidiu viver como zona rural. Fomos recebidos pelo som do que pensei serem máquinas enormes com problema, mas eram algumas Arapongas de criação que haviam na cidadezinha. Os pássaros daquele lugar eram uma exceção a todo o resto do mundo: Cantando nas árvores, comendo no chão do lado de nossos pés, estavam Canários da Terra, que coloriam a pequena cidade.

Chegamos à casa do Pedro Vazzoler, grande amigo de meu pai. A casa dele era um lugar aconchegante. Em frente à casa havia um campo de futebol society, separados apenas por uma rua de terra – diga-se de passagem que o campinho era de toda a vizinhança, sem restrição – com cascalhos; do lado que dava para a garagem, havia um enorme viveiro de pássaros com todos os tipos de aves coloridas e que eu jamais havia visto e, até o momento que teço estas linhas, nunca mais vi; o fundo da casa lembrava uma chácara, com o diferencial de possuir um morro enorme a poucos metros, com o que chamavam de Pedra Rachada (eu, munido da criatividade infantil, só a chamava de Pedra da bunda, por causa de sua aparência sugestiva).

Os Vazzoler compunham uma família receptiva e acolhedora. A comida era única. Como esquecer o macarrão com frango dos domingos? Apesar de Venda Nova do Imigrante ser um excelente lugar, fomos para a capital Vitória, afinal, era quase 31 de dezembro e queríamos passar a virada de ano na praia. Ficamos no apartamento do próprio Pedro. O apartamento era próximo à praia, pelo que consigo lembrar. Pedro nos guiava pela capital: Restaurantes inesquecíveis, passeios por pontos turísticos, um simples bar; até ir à esquina olhar os carros passarem era interessante. Ano novo comemorado, o Pedro precisou voltar para a roça, que é como ele se referia à sua cidade.

Agora eram apenas os dos Santos e a capital. Cada dia decidíamos fazer algo de diferente, até que em determinada noite fomos apenas passear de carro e conhecer um pouco mais de Vitória. Numa noite havíamos rodado talvez mais que toda a estada no Espírito Santo e achamos justo parar para comer. Refeição feita, era hora de voltar para o apartamento e descansar.

Comecei a imaginar que o apartamento teria se mudado para mais longe, pois não chegávamos nunca. –“Estamos perdidos” – sugeriu minha mãe, e meu pai, com o espírito do macho guia, recusou-se a aceitar. Mais 15 minutos e todos, inclusive meu pai, renderam-se ao óbvio: Estávamos perdidos na capital capixaba! Era uma capital e, do interior, as notícias que se tem de uma capital não são muito agradáveis. Passei a imaginar nosso sequestro a cada esquina dobrada. Felizmente não fomos sequestrados ou algo do tipo, e meu pai decidiu parar num posto de gasolina para abastecer o carro e pedir informações.

Seu Edson indica a quantidade de combustível ao frentista e desce do carro –“Vou comprar cigarros” – disse e eu redargui: –“Posso ir?”. Fomos à conveniência do posto comprar os cigarros. Com a vocação natural de detive de uma criança, passei a vasculhar a lojinha. Cinco minutos depois, meu pai não me encontra e vai à minha caça na loja de conveniências (era bem maior do que as atuais lojas de conveniências). Encontrou-me parado à frente de uma prateleira de CDs, olhando para o álbum dos Mamonas Assassinas, que eu queria. Pedi para meu pai comprar o CD e ele disse não, afinal, eu já tinha um. Rapidamente, Seu Edson passa a vista nos CDs e vê um de Oswaldo Montenegro e decide comprá-lo. Munido do CD, volto para o carro emburrado, com os olhos marejados, afinal, queria o álbum dos Mamonas!

Assim que dá a partida no carro, meu pai pede o CD e eu entrego, ele coloca o CD para tocar. Por cerca de 10 minutos nem dei bola para o som; mas, sem que eu pudesse perceber, uma música começa e me chama a atenção. Era “Bandolins” e eu a ouço com obstinada persistência. A melodia da música estava em perfeita harmonia com a atmosfera de Vitória e, não sei o motivo, tudo parecia estar calmo, como se apenas a música importasse. Por volta dos 12 anos de idade eu ouvi o que considerei ser a primeira música linda de minha vida. Ao mesmo tempo em que era plangente, era doce;  uma mistura de melíflua e dor; e como era linda a música!

Hoje, com 21 anos, ouço Bandolins novamente e o sentimento que me assola, trincando meu peito é: Que saudade do meu querido pai!