O casal há muito tempo ultrapassara a tênue linha que
separa uma grande convivência da monotonia, do tédio absoluto. Só não eram
estranhos na hora das refeições, oportunidade que une os maiores desafetos e
porque não um casal em tédio? Gonzaga, o marido, era um faminto por vocação
hereditária e seu maior deleite era comer, e comia ainda mais por ter recebido
a dádiva de nosso tempo: comer sem engordar. Eulália, a esposa, uma mulher que
os traços do rosto revelavam uma beleza há muito esquecida, era uma Amélia
melhorada. Seu prazer era cuidar da casa e manter o lar em ordem, impecável, um
paraíso de limpeza.
O almoço não era tão bem aproveitado, afinal, o casal
também fora suprimido do deleito do almoço, que resumia-se a comer rápido e
voltar para o trabalho. A janta, pelo contrário, era um espetáculo. Quem
assistia àquela janta não era capaz de dizer que o casal mal se falava durante
o restante do dia. Eulália fazia questão de vestir-se com pompa e usar a melhor
louça para servir o marido. Gonzaga, por sua vez, tomava um belo banho e
vestia-se com rigor, como se fosse receber o presidente americano para
compartilhar a janta. Havia uma espécie de protocolo a ser cumprido e o casal
primava pelo rigor. Prato de abertura, principal, acompanhamento, sobremesa.
Finda a janta, retiravam-se para o quarto e não se
falavam. Dormiam na mesma cama, costas com costas, e sequer trocavam carícias,
a intimidade do casal havia deixado o lar. Pela manhã, o despertador de Gonzaga
acordava o casal. O marido tomava banho, vestia-se, tomava café e seguia para o
trabalho. A esposa acordava, banhava-se, vestia-se, fazia o café para o marido
e partia para limpar a impecável casa. Ambos despediam-se sem um mísero, um
pequeno, adeus. Já não se importavam se, ao despertar, nunca mais se veriam
outra vez. Sentiriam saudades, talvez, na hora do jantar.
Num dia qualquer, Eulália resolve varrer a calçada da
frente. Varre com obstinada persistência. Não para até julgar não haver mais
sujeira. Em meio às varridas, topa com uma Dona que não conhecia e, de
imediato, pede desculpas:
– Me desculpe, não te vi. Estava muito concentrada em
varrer.
– Não têm problema – respondeu Roberta – Mas porque
tanta concentração em varrer?
– Sinceramente, não sei. Minha vida se resume a
limpar. Meu fardo é ser dona de casa e estou conformada. – Redarguiu Eulália.
– Deveria repensar seu conformismo – Retrucou
Roberta, que se despediu e entrou na casa ao lado.
Eulália jamais havia percebido a existência da
vizinha e não deu muita bola para o que Roberta lhe disse e continuou seu
martírio diário. Calçada limpa, foi para cozinha preparar o jantar do dia.
Jantar preparado, esperava o marido voltar do trabalho. Gonzaga chega e parte
para o banho, pensando no jantar e com uma ideia fixa que o assolou do trabalho
até o lar. Superado o protocolo para sentar-se à mesa, Gonzaga mastiga enquanto
tentava encontrar as palavras corretas e percebeu que tanto tempo sem diálogo
matrimonial haviam lhe tirado palavras que não diziam respeito ao jantar.
Pensou mais um pouco e disse à esposa, que estava sentada à sua frente:
– O negócio mesmo é nos separarmos, cada um para um
lado e vida nova. O que nos une é apenas esse jantar que eu já nem gosto tanto
assim. Então, topa a separação? Vai ser mais fácil por não termos casado no
papel. É só cada um partir pra um lugar diferente.
– Não sei se funciona mesmo – ponderou Eulália – Será
que conseguimos viver sem essa rotina miserável? Dê-me um tempo para pensar e
te dou uma resposta definitiva. Pode ser?
– Um mês e nada mais que isso! – Gonzaga sentenciou.
Realmente Eulália tinha medo de sair da sua rotinha
miserável, como gostava de chamar. Pensava que poderia enlouquecer, afinal,
seria como um bicho silvestre retirado de seu habitat natural. Ficava mais
tempo pensando e refletindo sobre a decisão a ser tomada do que limpando a
casa. A sujeira já não era de tão importante. No final de uma tarde de
quarta-feira, limpava a calçada quando Roberta aparece novamente e
pergunta-lhe:
– Que há? Você nunca percebeu minha existência, mas
eu sempre te observei. Percebo que anda pensativa.
Sem perceber, Eulália dá confiança à vizinha
estranha e faz a confissão – Sabe o que é? Meu marido quer a separação e eu não
sei se é bom negócio. Nosso casamento é uma faixada, nem no papel casamos! Já
não temos mais alegria de estarmos juntos e sequer trocamos carícias. Mas,
mesmo assim, não sei se é um bom negócio a separação.
– Boba! – Disse Roberta com um ar de superioridade –
Você não precisa de uma separação. Você precisa acender o fogo que deixou apagar.
– Não entendo – respondeu Eulália – aonde quer
chegar?
– Escuta – respondeu Roberta –, meu casamento também
não tinha mais a menor graça. Eu e meu marido também já não trocávamos carícias
e sequer havia sexo.
– Já nem sei mais o que é sexo – confessou Eulália
taciturnamente, como se buscasse, sem sucesso, a última intimidade com Gonzaga.
– E a solução está justamente no sexo, amiga! –
Aconselhou Roberta – Mas não sexo com seu marido. Para salvar seu casamento
você precisa encontrar um amante!
– Com o olho saltado e sem entender nada, Eulália fez
a pergunta – Mas como isso pode salvar meu casamento? Um amante, via de regra,
acaba com o casamento.
– Você não entende nada mesmo! – Gabou-se Roberta –
Olha, foi o que eu fiz e deu certo. Aconselhei outras amigas com o mesmo
problema e foi certeiro. Foi te explicar como funciona: Seu casamento está por
acabar por não haver sexo. Você já não sente atração pelo Gonzaga e nem ele por
você. A jogada é simples, minha filha: Se arrumar um amante, você terá sexo,
sem dúvida. Você vai andar pela sua casa sexualmente ativa novamente, isso vai
despertar em você a vontade de desejar seu marido de novo. E o golpe principal
é que homem nenhum resiste à mulher que está com desejos sexuais. Não têm erro.
Faz o que eu te disse e depois me conta! Tchau!
A ideia corrompeu a mente de Eulália por cerca de duas
semanas e, com o prazo para dar a decisão ao marido terminando, ela não sabia o
que fazer. Dois dias antes do prazo fatal, Eulália preparou o inabalável jantar
com a mesma eficiência, quiçá uma eficiência maior desta vez. Findo outro
jantar, Gonzaga foi sentar-se em sua poltrona para assistir TV. Distraído com o
noticiário, não percebeu que Eulália entrava na sala. A esposa saltou no colo
do marido e, sem hesitar, meteu-lhe um beijo na boca como se aquele fosse o
primeiro encontro do casal. O beijo foi intenso, molhado, apaixonado e quente.
Gonzaga tentou resistir, mas, enquanto começava a desabotoar a camiseta,
desistia da resistência. Depois daquela noite, o casamento foi salvo.
Coisas da vida...
Um final feliz? Estás a amar, biba? hehe
ResponderExcluirA melhor parte do conto e, sem dúvida, "desistiu de desistir".
Inté!
Pode não parecer, mas também sou um romântico, à moda antiga, é claro rs
ResponderExcluirO final é feliz dependo do ponto de vista. Eu não vejo dessa forma.
Valeu por acompanhar meus devaneios, meu bom pedreiro!
Abraços!