terça-feira, 4 de setembro de 2012

Traído, porém feliz


Dagmar e Euzébio eram casados há, pelo menos, uma década. Dizia-se que o casal era do tipo “paradão”, sem nenhuma novidade, sem crises, sem brigas que acordassem os vizinhos.  As fétidas vizinhas de esquina comentavam que talvez o casamento fosse apenas uma faixada, que era algum tipo de negócio imoral ou coisa que o valha. A verdade é que Dagmar e Euzébio não gostavam de experimentar novas experiências, nem aventuras, e estavam consideravelmente felizes com a vida monótona que levavam. O casal parecia ser regido pela burocracia estatal: acordavam sempre no mesmo horário, tomavam café juntos, cada um ia para o seu trabalho e no final da tarde se encontravam novamente. Já em casa, Euzébio cuidava dos bichos e do quintal, enquanto Dagmar preparava o jantar. Não tinham filhos e diziam-se felizes por ainda conservarem a falta de responsabilidade paterna e materna. Numa manhã de sábado, Euzébio propõe uma inovação, uma ousadia:

– Dagmar, sabe o que eu estava pensando?
– O que? – Responde Dagmar sem muita curiosidade ou algum grande interesse.
– Cinema. Vamos ao cinema ver algum filme. Está passando um bom de ação e pensei que seria uma boa irmos juntos. O que acha?
– Cinema? Sei não. Nós nunca saímos e você propõe um cinema, como se fossemos namorados? Fez alguma coisa de errado, Euzébio?
– Ora essa! Não posso levar minha esposa para se divertir sem que eu tenha feito algo de errado?
– Não, não pode. Os homens são assim: nunca querem fazer nada e, quando querem, fizeram alguma coisa de errado. Eu li na revista, Euzébio, eu li!
– Pois continue lendo sua revista que eu vou ao cinema sozinho!

E, de fato, Euzébio foi sozinho ao cinema. Emburrado com a suspeita pueril da esposa, decidiu tomar a decisão mais radical de sua pacata vida: sair sem a companhia da esposa. E, como não poderia ser surpresa, Euzébio não conseguiu assistir ao filme tranquilo. Na cadeira do cinema ele se remexia, impaciente. No fundo, sabia que cometera um erro. Metódico que era, fazia tudo sempre igual e pensava que qualquer alteração nos seus métodos – alguns chamavam de manias – poderia causar uma desgraça, quiçá o fim do mundo; era como se a alteração de suas manias perturbasse as leis e a ordem do universo, assim: sem explicação.
 De volta ao lar, no exato momento em que cruza a porta, Dagmar o recebe com uma pergunta:

– Gostou do seu cineminha? ­– Dagmar dava ênfase demasiada em “cineminha”.
– Um erro. E repito: um erro! – Euzébio confessou do alto de sua estranheza de manias – Fui sozinho e agora tenho a certeza de que uma desgraça vai acontecer.
– Eu te disse que era melhor ter ficado em casa. Eu disse.
– Realmente, você disse. Eu que sou um burro e não ouvi. Perdoe-me, minha esposa, perdoe-me!

Como foi dito no primeiro parágrafo, Dagmar e Euzébio formavam um casal feliz, monótono, mas feliz, e a absolvição de Euzébio foi sumária, célere, sumaríssima! Ali, na porta de entrada da casa, a absolvição foi dada e consumada. Os dois apenas tiveram tempo para fechar a porta, impedindo que os amaldiçoados olhares alheios corroessem o momento de luxúria que estava para se consumar.

Numa manhã de terça-feira, Dagmar acorda mal: olhos lacrimejando, garganta inflamada e dores de cabeça. Ao voltar do banheiro, Euzébio vê o rosto sofrido da mulher e a aconselha a continuar na cama e não ir trabalhar. Dagmar protesta dizendo que não poderia faltar no trabalho, mas Euzébio a convence de que no final do dia a levará ao médico e conseguirão um atestado. Dagmar acaba cedendo e continua a dormir até tarde. Lá pelas 14 e tantas Dagmar sai da cama, sem fome por causa da infecção na garganta. Como passara o dia inteiro deitada, decide ir tomar ar na calçada.

Tanto Dagmar quanto Euzébio eram demasiadamente reservados, não se davam ao luxo de sequer ficar na calçada de bobeira. Em posse de uma cadeira de área, Dagmar vai conferir a novidade que é a calçada. Senta-se debaixo de uma árvore, para aproveitar a sombra, e fica observando os transeuntes. A diversão dela era imaginar o que cada um estava fazendo e o que realmente gostaria de fazer. Sem que Dagmar perceba, uma vizinha de cadeiras largas e com significativo acumulo de gordura na região abdominal se aproxima e investe para saciar a curiosidade:

– Não foi trabalhar hoje, Dagmar?
– Oh, desculpe-me, quem é você?
– Sou a Fulana, sua vizinha de muro.
– A sim. Desculpe-me. É que fico muito em casa em não conheço a vizinhança.
– Eu já havia reparado isso – a vizinha confessa. – Mas, então, não foi trabalhar hoje?
– Pois é! Acordei muito mal da garganta! Não estou conseguindo nem comer, acredita?
– É virose. Nessa época do ano sempre dá virose.
– Pode ser, pode ser.
– E o seu marido? Ele foi trabalhar assim mesmo?
– Foi. Euzébio só quebra a rotina se morrer. Ele é cheio de manias e as conserva até com algum deleite.
– A vida de casado de vocês é uma rotina? – A vizinha pergunta na sua insensível curiosidade.
– É sim – Dagmar confessa numa inocência ímpar.
– Cuidado que casamento que cai na rotina acaba em traição.
– Bobagem. Vivemos na rotina, mas vivemos felizes.
– Você que pensa que é bobagem. Sei muito sobre casamentos e sei que você deve escolher se vai trair ou se vai ser traída. E, quanto antes tomar a decisão, melhor.
– Eu não tenho coragem de trair meu Euzébio. Ele não me dá motivos e eu trairia a troco de que?
– A troco de não ser traída, bobinha. Casamento é isso: um equilibrismo de traições.
– Que visão mais pessimista. Pois fique sabendo que eu não tenho nem um pingo de vontade de trair. Nunca tive e nunca terei!
– Pois eu te aviso: se colocar uma novidade na rotina de vocês, ainda que seja a presença de um amante, o casamento melhora. E você não será a traída. E que mal pode ter um amante? Desde que seu marido não saiba de nada, um amante faz até bem. O amante é quem apimenta a relação. Ter um amante faz você viver a eterna disputa no sexo: quem é melhor? O marido ou o amante? Entendeste?
– Entendi perfeitamente. Entendi que a senhora é meio pirada. Diga-me uma coisa: a senhora trai o seu marido?
– Eu sou viúva, minha filha, viúva!

Dagmar considerou um absurdo as ideias da viúva vizinha gorda. Como um amante poderia deixar o casamento mais interessante? E a ideia de uma competição de sexo fazia Dagmar sentir-se quase uma prostituta. Mas, como se trata de coisas da vida, com o passar do tempo, a ideia da vizinha criou raízes na cabeça de Dagmar. Não só criou raízes como também amadureceu. ­– E há coisa mais difícil de ignorar do que uma ideia fixa? Creio que não. – Num dia qualquer, já totalmente curada da enfermidade que ocasionou o encontro com a viúva, Dagmar prepara a janta, mas a prepara sem dar muita atenção à comida. Seus pensamentos eram mais críticos, mais observadores e mais excitantes. A partir de então, considerou que a vida do casal era realmente uma chatice sem fim, dessas de causar um tédio colossal.

Dagmar era funcionária pública municipal e trabalhava numa seção administrativa da prefeitura. Ociosa numa tarde em que apenas esperava o tempo passar, ela começou a reparar em Oswaldinho, um rapaz mais jovem e de beleza considerável. A partir de então, a mente de Dagmar foi tomada pela ideia maluca da vizinha. Deitar-se com Oswaldinho era o objetivo de Dagmar. – “Quem sabe essa pulada de cerca não coloca mais fogo no meu casamento?” – Pensava Dagmar, na tentativa de encontrar uma justificativa moral para o adultério.

Em poucos dias e com uma astúcia admirável, Dagmar arquiteta todo o seu plano e decide coloca-lo em prática. Como Oswaldinho era um Guardinha – espécie de jovem que faz vários trabalhos administrativos mais chatos ganhando menos do que um empregado de verdade ganharia – ela pede ao garoto que leve alguns processos administrativos para tirar cópias na copiadora, mas na copiadora da sala de Dagmar. Sem nada estranhar, Oswaldinho obedece às ordens e parte para a tarefa. Dagmar preferiu que o garoto entrasse quando a sala estivesse sozinha. Assim, poderia surpreendê-lo. E foi o que fez. Sem imaginar qualquer mal, Oswaldinho adentra a sala de Dagmar e começa a tirar as cópias. Cerca de quatro minutos depois, Dagmar entra na sala, mas entra sorrateira. Sem que Oswaldinho percebesse, ela segura na cintura do rapaz e diz:

– Sabe que eu sempre te achei o mais gatinho de todos os guardinhas dessa prefeitura?
– Que isso, Dona Dagmar? – Oswaldinho responde acanhado.
– Não fique tímido. Sei que você me olha. Ou pensa que eu nunca te peguei olhando para minha bunda quando passo por você?
– Perdão, Dona Dagmar! Perdão! Eu não fiz por mal. Às vezes faço isso sem querer. Desculpe-me!
– Não seja bobo, rapaz! E pare de me chamar de “Dona” Dagmar. É para me chamar apenas de Dagmar, entendido?
– Sim, Dona Dagmar. Desculpe-me! Sim, Dagmar!
– Então, como eu disse, já vi você olhando para a minha bunda. Não é verdade? Você não fica olhando?
– Não... – Oswaldinho responde com a timidez de quem mente, mas não quer mentir.
– Mentiroso. Se você confessar, eu não conto nada ao secretário. Vamos, confesse: você ficava olhando para a minha bunda?
– Sim, eu ficava olhando quando a senhora passava. Dagmar, você é uma mulher atraente, é normal que eu olhe.
– E porque você olhava? Queria pegar nela? – Dagmar pergunta, de maneira sensual, apontando para as próprias nádegas.
Já delirante e possuído pelo desejo, Oswaldinho diz: – Queria, Dagmar, queria muito apertar.
– Pois vamos, aperte minha bunda. Vamos.
– Dagmar, e se alguém ver?
– Ninguém está vendo. Vamos, mostre que tem coragem!
Oswaldinho faz a investida, mas Dagmar desvia do rapaz e diz:
– Queria saber se tinha realmente coragem e agora já sei. Se quiser continuar, apareça em casa amanhã, no horário do expediente.
– Mas como vou estar lá no horário do expediente?
– Isso já é um problema seu. Se quiser continuar, esteja lá, mais precisamente, às 15 horas.
– Mas e o seu marido? Você não é casada?
– Sou, sim. Mas meu marido não vai estar em casa, te garanto. Se quiser, apareça. Tchau, tchau!

No dia seguinte, Dagmar foi trabalhar no período da manhã e sempre que cruzava o olhar com Oswaldinho, punha o rapaz em chamas instantâneas. Antes de sair para o almoço, Dagmar passa na seção de controle do Ponto para avisar que não voltaria no período da tarde e que a ausência deveria descontada depois, de suas férias. Já Oswaldinho, sempre temeroso em levar bronca ou perder o emprego que lhe garantia a compra de futilidades juvenis, preferiu esperar que fosse incumbido de algum trabalho na rua para poder demorar e ir até Dagmar matar seu incontrolável desejo pela luxúria, matar o desejo pela mulher alheia, pela mulher casada.

Pontualmente às 15 horas, Oswaldinho liga para o celular de Dagmar, avisando-a de que estava no portão, esperando para entrar. De imediato, Dagmar abre um pouco a porta da frente, dando o sinal para que o garoto entre. Assim que cruza a porta, Oswaldinho quase cai das próprias pernas: Dagmar estava numa lingerie infernal, daquelas que tirariam do sério até o monge mais concentrado. Oswaldinho não tem dúvidas e investe um beijo desesperado, mas é barrado por Dagmar, que o arrasta para o quarto.

Dentro daquelas quatro paredes houve de quase um tudo. Foram cerca de duas horas de dedicação à luxúria. No final do encontro, Oswaldinho está colocando a roupa maravilhado, encantado com a overdose sexual que experimentara. Estava tão maravilhado, e quase em transe, que se esquecera completamente de voltar para a prefeitura no fim do expediente. Mas naquele momento nada importava. Exausto e com a sinceridade inerente ao bobo apaixonado, Oswaldinho confessa:

– Eu sempre fui louco por você Dagamar!
– Bom saber disso. – Responde Dagmar.
– Você só diz isso? “Bom saber disso”?
– Queria que eu dissesse mais o que, garoto?
– Bom, tanto faz. Amanhã nos encontramos de novo?
– Não sei. Vou pensar no seu caso.

E Dagmar realmente pensou no caso. No dia seguinte, no trabalho, Oswaldinho quis falar com Dagmar:

– Dagmar, eu queria... – Dagmar interrompe.
– Dona Dagmar!
– Mas a senhora disse que era apenas “Dagmar” para mim.
– Pois mudei de ideia!
– Que confusão! Mas nós nos encontraremos hoje de novo?
– Nem hoje, nem nunca mais!
– Mas... – E Oswaldinho ficou com a cara no chão.

A verdade é que Dagmar usou o garoto como um rato de laboratório para saber se a traição realmente inovaria seu casamento, mas nada aconteceu. Enquanto caminhava para chegar ao lar, Dagmar pensa se contaria ou não para Euzébio o que havia acontecido. Assim que chega ao portão de casa, ela tem a conclusão: não contaria nada e nunca mais trairia. Guardaria tudo para si e ninguém nunca saberia do acontecido. Ao chegar à sala da casa, vê Euzébio lendo o jornal. Dagmar pula no colo do marido e mete-lhe um molhado beijo na boca. Euzébio, assustado, com a ação da esposa, pergunta:

– Que isso? Assim, do nada?
– Agora eu sei que te amo de verdade, meu amor!

Dagmar não mentia. Os dois continuaram com a vida monótona que levavam e Euzébio, desde então, passou a ser um marido traído, porém feliz.

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