segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Morto e cheio de amor


Mévio vivia só, gostava de estar sozinho, ouvindo o silêncio, sentindo a paz que a solidão proporciona. Passava dos 37 anos e mantinha o hábito da solidão, adquirido na juventude. Sua vida fora sempre um mistério, ninguém sabia, ao certo, de onde vinha, aonde chegaria, ou o que fazia.  – “Assim é mais seguro” – pensava. O mais eficiente biógrafo não conseguiria registrar os fatos importantes de sua misteriosa vida.

No trabalho, inevitavelmente, alguém, movido pelo inerente interesse pela vida alheia, questionava Mévio acerca de sua vida:

– Então, rapaz, como é? Você sempre morou por aqui? Somos colegas de trabalho e não sei nada sobre ti.
– Melhor assim. Não gosto que saibam sobre mim.
– Mas por quê?
– A maledicência humana me impressiona.

E Mévio não falava apenas da boca para fora. Ninguém podia ver, mas sua alma estava marcada por cicatrizes de um passado de traições, desgostos e decepções. Certa vez, conversando com um já falecido amigo, – talvez seu único amigo – Mévio começa a confessar-se:

– Confio apenas em ti, Ramon, em ninguém mais. Conheço-te há tempos e em ti confio.
– Agradeço por sua confiança, Mévio, mas acho besteira essa sua mania de desconfiar de todos.
– Besteira nada! A vida inteira vi pessoas traírem umas às outras, e também a mim.
– Vemos o que queremos ver. – ponderou Ramon.
– Eu diria: “Vemos o que está estampado na nossa cara” – retrucou Mévio. – E quando falo de traição, não me refiro apenas às traições amoras, dos relacionamentos.
– Não entendi muito bem.
– Olha, escuta: Qualquer relacionamento é baseado em confiança, meu amigo. Até o relacionamento que tenho com o dono do boteco: Só o frequento por confiar no Seu Fulano. E toda vez que alguém quebra essa confiança, trai a outra pessoa que depositou confiança.
Ramon parou por alguns segundos, tentando digerir as ideias do amigo e entende-las, e disse: – O pior é que você têm razão. Eu nunca havia olhado os relacionamentos desta maneira.
– Pois deveria, deveria! – Aconselhou Mévio.

Um acúmulo de frustrações: esse era Mévio. Talvez seu fardo fosse viver sofrendo, se decepcionando. Alguns nascem para amar e serem amados, outros nascem para sofrer o tempo todo, sem exceção. Ainda na infância, os amiguinhos da escola, invariavelmente, o deixavam de canto e, quando pensava ter encontrado um amiguinho, sua confiança era traída, esquecida, violada, desrespeitada. Ainda jovem, nutria esperanças de encontrar alguém em quem confiar, alguém para se confessar, alguém para amar. Encontrou em Ramon os dois primeiros objetivos. O terceiro não era possível, pois amava Ramon, mas como amigo. O amor que desejava era um amor de mulher, um amor de casal. Depois da morte de Ramon, quando Mévio estava com 23 ou 24 anos, as esperanças que depositava no ser humano foram atiradas à lixeira.

Ainda moço, conheceu uma bela mulher, bonita, interessante, esperta e bem resolvida. Aberlarda foi sua paixão momentânea. Mévio sentia na moça um ar de confiança, de esperança, e decidiu namorar a jovem. Fez conforme o protocolo mandava, confessando-se para a moça, contando seus problemas e coisas do tipo. No dia em que foi pedir a moça em namoro, fez questão de sublinhar:

– Olha, Abelarda, quero te dar uma coisa.
– Que lindo, Mévio! O que é?
– Feche os olhos e vire-se que eu vou pegar. – a moça obedece.
– Pronto, pode virar! – diz Mévio.
Mévio fechava as mãos em formato de concha, como se segurasse alguma coisa. Abelarda, maravilhada, imaginava uma aliança ou algum mimo. Devagar, Mévio começa a abrir a mão e Abelarda fica em dúvida, pois não vê nada nas mãos de Mévio, e pergunta:
– Cadê? Não vejo nada!
– O que eu quero te dar não é visível aos olhos da carne; é visível apenas aos olhos da alma. Em minhas mãos está toda a minha confiança e quero que fique com ela. Não saia de casa sem ela, não a deixa esquecida, não derrube, não danifique e nem perca. Lembre-se: Aí está toda a minha confiança, se você perder, não há mais. – E, encenando um gesto de entrega, passa o “vazio” de suas mãos às mãos da namorada.

Já contavam cerca de 4 meses de namoro e, num dia qualquer, um colega de trabalho vira-se para Mévio e diz:

– Olha, se quiser que eu lhe empreste uma grana para te ajudar com aquele problema, não hesite em pedir. Apesar de não te conhecer muito bem, gosto de ti, colega!

Mévio estaca por um tempo e põe as sobrancelhas na posição pensante. Como o colega de trabalho poderia saber de seu problema? Não restavam dúvidas. A única pessoa que sabia do problema era a namorada e a informação só poderia ter vazado de Abelarda. Possesso com a quebra de confiança, liga para a namorada e diz:

– Você perdeu minha confiança e, como eu te disse, não há mais! É o fim. Não há mais nada entre nós e me arrependo de ter havido! – Bate o telefone antes que possa ouvir a resposta da ex-namorada.

Talvez nem o próprio Mévio entendesse os desígnios de seu coração. Inconscientemente, o que Mévio buscava era alguém para amar, alguém para confiar, alguém para lhe fazer companhia. “A solidão é a condenação das almas desgraçadas” estava escrito na parede do quarto de Mévio. O coração deste era bondoso, bem intencionado, cheio de amor verdadeiro e com uma imensa vontade de dar esse amor. Porém, a vida assolou o coração de Mévio até retirar-lhe as forças, até que o rapaz se esquecesse do que era capaz e transformasse o homem em um frustrado, um decepcionado ambulante.

Sem explicação clara, Mévio adoece. Não ia ao médico com muita frequência e preferia brincar de médico com a própria saúde. Quatro dias depois de se medicar e se avaliar, a febre que o acometida era demasiadamente forte, fazendo com que Mévio sequer conseguisse sair da cama. Ao final de uma tarde, em torno das oito e meia da noite, estava delirante de febre e dores. Mas ainda restava-lhe um pingo de consciência. Pingo este que foi o suficiente para Mévio chegar à conclusão: – “Vou morrer!” – disse para si mesmo. Com o mesmo resquício de consciência, comoçou a dialogar com a própria consciência:

– Ninguém deveria morrer como eu: só e sem ninguém para chorar a morte.
– Você escolheu viver desse jeito, meu caro. – Respondeu a consciência.
– Verdade. À beira da morte, não posso negar, à beira da morte apenas as verdades são ditas. Mas não me culpo por inteiro, afinal, sempre traíram minha confiança.
– A culpa é apenas sua, Mévio. Você cometeu um sério pecado: Perdeu a fé no amor. Passou a viver como se o amor e a confiança já não existissem.
– Mas eu sempre busquei a ambos. Porém, não os encontrei.
– Talvez eles estivessem em lugares que você apenas olhou. Se tivesse observado, encontraria.
– Têm razão. Perdi a fé no amor, na confiança e nas pessoas. Ninguém deveria fazer o que fiz. Sempre quis alguém para amar, e amor eu sempre tive para dar. Mas minha descrença fez com que eu guardasse esse amor em meu amargurado coração.

Dez minutos depois morreu. E, naquela cama, sozinho, havia um morto cheio de amor.

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