Mévio vivia só, gostava de estar sozinho, ouvindo o
silêncio, sentindo a paz que a solidão proporciona. Passava dos 37 anos e
mantinha o hábito da solidão, adquirido na juventude. Sua vida fora sempre um
mistério, ninguém sabia, ao certo, de onde vinha, aonde chegaria, ou o que
fazia. – “Assim é mais seguro” –
pensava. O mais eficiente biógrafo não conseguiria registrar os fatos
importantes de sua misteriosa vida.
No trabalho, inevitavelmente, alguém, movido pelo
inerente interesse pela vida alheia, questionava Mévio acerca de sua vida:
– Então, rapaz, como é? Você sempre morou por aqui?
Somos colegas de trabalho e não sei nada sobre ti.
– Melhor assim. Não gosto que saibam sobre mim.
– Mas por quê?
– A maledicência humana me impressiona.
E Mévio não falava apenas da boca para fora. Ninguém
podia ver, mas sua alma estava marcada por cicatrizes de um passado de traições,
desgostos e decepções. Certa vez, conversando com um já falecido amigo, –
talvez seu único amigo – Mévio começa a confessar-se:
– Confio apenas em ti, Ramon, em ninguém mais. Conheço-te
há tempos e em ti confio.
– Agradeço por sua confiança, Mévio, mas acho
besteira essa sua mania de desconfiar de todos.
– Besteira nada! A vida inteira vi pessoas traírem umas
às outras, e também a mim.
– Vemos o que queremos ver. – ponderou Ramon.
– Eu diria: “Vemos o que está estampado na nossa cara”
– retrucou Mévio. – E quando falo de traição, não me refiro apenas às traições
amoras, dos relacionamentos.
– Não entendi muito bem.
– Olha, escuta: Qualquer relacionamento é baseado em
confiança, meu amigo. Até o relacionamento que tenho com o dono do boteco: Só o
frequento por confiar no Seu Fulano. E toda vez que alguém quebra essa
confiança, trai a outra pessoa que depositou confiança.
Ramon parou por alguns segundos, tentando digerir as
ideias do amigo e entende-las, e disse: – O pior é que você têm razão. Eu nunca
havia olhado os relacionamentos desta maneira.
– Pois deveria, deveria! – Aconselhou Mévio.
Um acúmulo de frustrações: esse era Mévio. Talvez seu
fardo fosse viver sofrendo, se decepcionando. Alguns nascem para amar e serem
amados, outros nascem para sofrer o tempo todo, sem exceção. Ainda na infância,
os amiguinhos da escola, invariavelmente, o deixavam de canto e, quando pensava
ter encontrado um amiguinho, sua confiança era traída, esquecida, violada,
desrespeitada. Ainda jovem, nutria esperanças de encontrar alguém em quem confiar,
alguém para se confessar, alguém para amar. Encontrou em Ramon os dois
primeiros objetivos. O terceiro não era possível, pois amava Ramon, mas como
amigo. O amor que desejava era um amor de mulher, um amor de casal. Depois da
morte de Ramon, quando Mévio estava com 23 ou 24 anos, as esperanças que
depositava no ser humano foram atiradas à lixeira.
Ainda moço, conheceu uma bela mulher, bonita,
interessante, esperta e bem resolvida. Aberlarda foi sua paixão momentânea.
Mévio sentia na moça um ar de confiança, de esperança, e decidiu namorar a
jovem. Fez conforme o protocolo mandava, confessando-se para a moça, contando seus
problemas e coisas do tipo. No dia em que foi pedir a moça em namoro, fez
questão de sublinhar:
– Olha, Abelarda, quero te dar uma coisa.
– Que lindo, Mévio! O que é?
– Feche os olhos e vire-se que eu vou pegar. – a moça
obedece.
– Pronto, pode virar! – diz Mévio.
Mévio fechava as mãos em formato de concha, como se
segurasse alguma coisa. Abelarda, maravilhada, imaginava uma aliança ou algum
mimo. Devagar, Mévio começa a abrir a mão e Abelarda fica em dúvida, pois não
vê nada nas mãos de Mévio, e pergunta:
– Cadê? Não vejo nada!
– O que eu quero te dar não é visível aos olhos da
carne; é visível apenas aos olhos da alma. Em minhas mãos está toda a minha
confiança e quero que fique com ela. Não saia de casa sem ela, não a deixa
esquecida, não derrube, não danifique e nem perca. Lembre-se: Aí está toda a
minha confiança, se você perder, não há mais. – E, encenando um gesto de
entrega, passa o “vazio” de suas mãos às mãos da namorada.
Já contavam cerca de 4 meses de namoro e, num dia
qualquer, um colega de trabalho vira-se para Mévio e diz:
– Olha, se quiser que eu lhe empreste uma grana para
te ajudar com aquele problema, não hesite em pedir. Apesar de não te conhecer
muito bem, gosto de ti, colega!
Mévio estaca por um tempo e põe as sobrancelhas na
posição pensante. Como o colega de trabalho poderia saber de seu problema? Não restavam
dúvidas. A única pessoa que sabia do problema era a namorada e a informação só
poderia ter vazado de Abelarda. Possesso com a quebra de confiança, liga para a
namorada e diz:
– Você perdeu minha confiança e, como eu te disse,
não há mais! É o fim. Não há mais nada entre nós e me arrependo de ter havido! –
Bate o telefone antes que possa ouvir a resposta da ex-namorada.
Talvez nem o próprio Mévio entendesse os desígnios de
seu coração. Inconscientemente, o que Mévio buscava era alguém para amar,
alguém para confiar, alguém para lhe fazer companhia. “A solidão é a condenação
das almas desgraçadas” estava escrito na parede do quarto de Mévio. O coração
deste era bondoso, bem intencionado, cheio de amor verdadeiro e com uma imensa
vontade de dar esse amor. Porém, a vida assolou o coração de Mévio até
retirar-lhe as forças, até que o rapaz se esquecesse do que era capaz e
transformasse o homem em um frustrado, um decepcionado ambulante.
Sem explicação clara, Mévio adoece. Não ia ao médico
com muita frequência e preferia brincar de médico com a própria saúde. Quatro
dias depois de se medicar e se avaliar, a febre que o acometida era
demasiadamente forte, fazendo com que Mévio sequer conseguisse sair da cama. Ao
final de uma tarde, em torno das oito e meia da noite, estava delirante de
febre e dores. Mas ainda restava-lhe um pingo de consciência. Pingo este que
foi o suficiente para Mévio chegar à conclusão: – “Vou morrer!” – disse para si
mesmo. Com o mesmo resquício de consciência, comoçou a dialogar com a própria
consciência:
– Ninguém deveria morrer como eu: só e sem ninguém
para chorar a morte.
– Você escolheu viver desse jeito, meu caro. –
Respondeu a consciência.
– Verdade. À beira da morte, não posso negar, à beira
da morte apenas as verdades são ditas. Mas não me culpo por inteiro, afinal,
sempre traíram minha confiança.
– A culpa é apenas sua, Mévio. Você cometeu um sério
pecado: Perdeu a fé no amor. Passou a viver como se o amor e a confiança já não
existissem.
– Mas eu sempre busquei a ambos. Porém, não os encontrei.
– Talvez eles estivessem em lugares que você apenas
olhou. Se tivesse observado, encontraria.
– Têm razão. Perdi a fé no amor, na confiança e nas
pessoas. Ninguém deveria fazer o que fiz. Sempre quis alguém para amar, e amor
eu sempre tive para dar. Mas minha descrença fez com que eu guardasse esse amor
em meu amargurado coração.
Dez minutos depois morreu. E, naquela cama, sozinho,
havia um morto cheio de amor.
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